Nébula Rasa

Nós contra eles

Sou um ser humano normal e, na medida do possível, saudável. Apesar disso, sou um fracasso se tivesse que me virar sozinho numa savana. Sou mais alto do que a vegetação, portanto visível. Minha audição, olfato e visão nem se comparam às dos meus possíveis predadores. Meu tórax e pescoço são áreas grandes e frágeis que expõem todos meus órgãos internos ao perigo. Mas sabe no que eu sou razoavelmente bom? Em me juntar com outros humanos, arrumar alguns cachorros e lanças pontiagudas e matar qualquer animal no planeta.

Somos inevitavelmente animais sociais. Desde os primórdios, os indivíduos com mais habilidade de cooperar com seu grupo acabavam vivendo mais e melhor, deixando mais descendentes que indivíduos que foram mandados ao ostracismo. Geração após geração, prevaleceram os genes responsáveis pelo espírito de equipe e pela busca da integração com outros seres humanos. O resultado dessa pressão evolutiva se faz presente em nós na forma de um ímpeto indomável de nos agruparmos e mostrarmos tanto lealdade aos membros do nosso grupo quanto hostilidade a todo o resto. Crianças ou adultos, se deixados por conta própria, formarão grupos em questão de poucos minutos e pelas razões mais fúteis; talvez porque se sentavam próximos, ou porque descobriram gostar mais de Star Wars do que de Star Trek. Pesquisadores já observaram pessoas formando grupos e criando laços de lealdade com base em parâmetros tão irrelevantes quanto, por exemplo, a preferência por determinada obra de arte clássica. Somos programados para entrar no modo “nós contra eles” sempre que possível.

Mas afirmar pertencer a um grupo simplesmente não lhe torna parte dele. Falar é fácil e não envolve quase custo algum. Se um grupo não exigir um preço maior pela filiação, indivíduos egoístas podem usufruir dos benefícios da convivência sem se sacrificarem por ela. Por isso, o sinal de que você pertence a um grupo se tornou, pelas mesmas pressões evolutivas, obrigatoriamente algo caro demais para ser falsificado. A lógica é análoga à cauda dos pavões machos: ostentar um penacho enorme e colorido que chama a atenção de predadores a qualquer distância certamente põe sua vida em risco. Só aqueles que tem muita “bala na agulha” (isto é, uma ótima predisposição genética) podem se dar ao luxo de correr esse risco. Qualquer impostor mais fraco que tente imitar um sinal como este sofrerá horríveis consequências.

As sociedades humanas também oferecem meios caros para que os seus integrantes provem sua lealdade. Algumas tribos amazônicas sujeitam adolescentes a uma provação de dois dias com formigas-bala mordendo seus corpos. Outras, promovem rituais de flagelação de tempos em tempos. Se você fosse integrante de uma dessas tribos, quem você consideraria um aliado mais confiável? Aquele que faz loucuras pra provar sua devoção ao grupo ou aquele que é incapaz de pôr a pele em jogo? Da mesma forma, durante a Idade Média no Ocidente, seguir à risca os ritos religiosos era a principal maneira de sinalizar consonância com o vilarejo. A religião não tem apenas propósitos terapêuticos, mas também sociais. Afinal, pagar penitências, confessar aos padres seus segredos mais vergonhosos, doar um décimo do seu soldo, frequentar a igreja todo domingo e estudar as Escrituras são atividades que custam tempo, dinheiro e esforço. Se eu fosse um aldeão medieval, estaria provando, para o inconsciente coletivo (e para o meu próprio), que eu sou uma boa pessoa e digna de confiança. A quem você preferiria confiar sua vida? A mim, que me desdobro para ir à missa para ouvir um sermão interminável sobre amor ao próximo, ou ao vizinho que ninguém vê na missa se dedicando para ser uma pessoa melhor? Neste período da história, ser — ou ao menos parecer — cristão era uma regra moral cuja infração poderia ser punida com o ostracismo (ou a morte).

No entanto, as coisas eram um pouco mais fáceis antigamente, quando convivíamos a vida toda em nossas pequenas tribos ou vilarejos e sabíamos da índole de todos entre pouco menos de uma centena de habitantes. Era trivial apontar quem tinha a pele em jogo pela comunidade. Mas atualmente, vivemos em uma mega-tribo de bilhões de integrantes. É simplesmente impossível eu conhecer os traços de personalidade e o real comprometimento de cada um, caso a caso. Como posso confiar em outros cidadãos, como o tiozinho da banca de jornal, o homem que oferece ajuda para carregar malas, a moça que senta ao meu lado no ponto de ônibus e puxa uma conversa, ou qualquer outro contato no Facebook que não conheço profundamente? E como posso mostrar a eles que podem confiar em mim? De uma maneira grosseiramente simplificada, essa resposta foi descoberta pela psicologia evolutiva e amplamente explorada por equipes de marketing: nós, seres humanos, agimos, compramos, vestimos, usamos, mostramos, adotamos estilos de vida e falamos publicamente de coisas que sinalizam algo a respeito de nós mesmos, geralmente para salientar nossas qualidades ou para reforçar nosso comprometimento com a tribo. Seja como for, agimos inconscientemente para conquistar as pessoas e sinalizar que podemos ser bons aliados — mesmo que isto exija ser hostil a outras pessoas.

Esse anseio em sinalizar algo sobre si mesmo, um comportamento quase automático, não permitirá que seus parentes e amigos que odeiam ou amam determinada figura política deixem de encaminhar mensagens de ódio. Você poderá bloqueá-los, mas não importa. Eles continuarão compartilhando as mesmas mensagens enfurecidas para seus grupos de apoio, onde todos já conhecem aquele discurso e concordam com cada palavra — porque quando não estamos conscientes desse comportamento, não buscamos uma discussão racional, mas sim recíprocos tapinhas nas costas.

(Essa é uma das razões pela qual eu passei a evitar discutir política publicamente. Eu percebi que quando havia uma plateia, as pessoas com quem conversava se preocupavam mais em falar bonito e cultivar aplausos do que realmente ter a mente aberta.)

Para ilustrar esse mecanismo, o melhor exemplo que me vem à mente é minha experiência com o vegetarianismo. Dietas que passam a fazer parte da identidade das pessoas (como vegetarianismo, veganismo, keto, dieta paleolítica, crudivorismo e afins) envolvem demonstrações conspícuas de lealdade ao grupo e frequentemente causam discussões inflamadas; sendo assim, uma ótima alegoria de discussão política.

(Algo que eu reconhecia, e até pedia desculpas pelos meus pares, era a fama de vegetarianos insistirem em evangelizar a população carnívora em toda e qualquer oportunidade. Os que não tentam te convencer de forma condescendente são raros — e a estes, eis minha profunda admiração. Eu, no entanto, pertenci à maioria.)

Quando me tornei vegetariano há alguns anos, senti imediatamente uma necessidade inexplicável de expor publicamente meu estilo de vida. Não comer carne passou a fazer parte da minha identidade — mas não era só uma questão de identidade. Eu não queria que as pessoas soubessem meu nome tanto quanto eu queria que soubessem que eu era vegetariano. Eu poderia perfeitamente não comer carne e guardar o estilo de vida para mim, mas preferi usar bótons de vaquinha feliz na mochila, adesivos no carro, tags nas fotos de perfil; preferia comprar produtos que não só eram vegan safe, como também deveriam parecer vegan safe.

As razões, em retrospectiva, parecem óbvias: uma mochila grosseira e amarelada, feita de lona náutica reciclada com uma letra V estampada em verde (e uma folhinha) reforça minha aparência de vegetariano e transmite uma tonelada de informações a meu respeito — que sou psicologicamente resiliente e aberto a novas experiências, que tenho um bom grau de empatia em vista da luta pelo bem estar animal, e que me oponho a normas sociais conservadoras. Por tabela, vegetarianos se correlacionam com certas políticas sociais, questões de igualdade, liberdades individuais etc. — eu sabia disso, e sabia que a sociedade sabia. Eram razões suficientes para eu usar minha mochila de lona com letrinha verde.

Neste momento eu estava convencido de que, do ponto de vista utilitarista, fazia um bem ao mundo: através do exemplo, outras pessoas poderiam se interessar por uma mochila igual. Ou poderiam me ouvir discorrendo sobre os malefícios da carne e tornarem-se elas também vegetarianas, causando menos impacto ao meio ambiente. Afinal, se sou vegetariano por questões ambientais ou éticas, quanto mais gente eu conseguir converter, mais eu estarei contribuindo para fazer a diferença no mundo.

Por outro lado, considere as ostentações menos eficientes como os bótons na mochila, adesivos nos carros ou tatuagens com o “V” vegano. Você acha que alguém deixaria de comer churrasco por conta do desenho na pele de um estranho qualquer? Ou por conta de uma camiseta com estampa dizendo “a morte do planeta é culpa sua”? Parte da motivação por trás desse meu show era — hoje percebo — me afirmar como leal centurião do exército vegetariano e afrontar todos que não fossem.

Os méritos do vegetarianismo são inúmeros, mas todos nós conhecemos aquela ou aquele estão nessa mais pela sinalização de virtudes do que pela causa ambiental ou pelo bem-estar animal. O ponto é que todos nós, eu menor ou maior grau, fazemos isso. Faz parte da nossa natureza social — e está tudo bem.

Sendo assim, lembre-se do quão inevitável é que as pessoas colem adesivos em seus carros com mensagens inflamadas; que compartilhem imagens provocativas nas redes sociais; que disparem bravatas nas rodas de conversa; que santifiquem seus políticos preferidos; que enalteçam os impactos diretos de suas ideologias enquanto diminuem seus efeitos colaterais. Algumas vezes, elas nem ao menos acreditam no que estão dizendo. Estão apenas tentando ser leais. Regras da vida em sociedade.

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