Nébula Rasa

O secretário de imprensa em nosso cérebro

Figure 1: Jean-Paul Laurens - Le Pape Formose et Étienne VII (1870)

Figure 1: Jean-Paul Laurens - Le Pape Formose et Étienne VII (1870)

Matt Riddley, em As Origens da Virtude, observa que a moralidade é fruto de pressões evolutivas, uma ferramenta para reforçar a cooperação e o espírito de grupo entre indivíduos de diferentes idades, gêneros e aspectos raciais.

Como ela se manifesta, por outro lado, é motivo de disputa entre aqueles que acreditam que preceitos morais nascem com o indivíduo e os que afirmam que a moralidade seja meramente uma construção cultural. Acredito que, dentro do contexto das discussões políticas, apontar a origem da moralidade é menos importante que ter em mente de que ela não é nem um conceito universal e nem produto de um cuidadoso processo de raciocínio lógico.

Depois de ler A Mente Moralista de Jonathan Haidt, fiquei ainda mais convencido de que aquilo que pensamos ser nossos valores morais não passam de racionalizações post hoc de julgamentos preconcebidos. Mostrarei o que quero dizer através de uma sequência de ocasiões envolvendo violações de alguns tabus e, ao final de cada item, você deverá dizer a si mesmo se houve ou não algum ato imoral.

  1. Uma mulher está limpando seu guarda-roupas e ela encontra uma

bandeira nacional. Ela não quer guardar mais a bandeira, então resolve cortá-la em pedaços e usá-la para limpar seu vaso sanitário. Ninguém a viu fazendo isso.

  1. O cachorro de estimação de uma família foi atropelado em frente à

sua casa. Eles ouviram dizer que carne de cachorro é uma iguaria, então limparam o corpo, assaram-no e comeram-no no jantar. Ninguém os viu fazendo isso.

  1. Julie e Mark são irmão e irmã. Eles estão viajando juntos pela

França durante as férias de verão da faculdade. Uma noite, eles estão sozinhos no chalé próximo à praia. Eles decidem que seria interessante e divertido se transassem. No mínimo, seria uma experiência nova para ambos. Julie já toma anticoncepcionais, e Mark usa preservativos por precaução. Ambos gostam da experiência, mas decidem não fazer isso novamente. Eles guardam aquela noite como um segredo especial, fazendo com que se sintam ainda mais próximos.

Estes exemplos fizeram parte de um experimento onde Haidt entrevistou pessoas de diversas culturas, expondo-as a uma série de histórias fictícias — geralmente envolvendo alguma forma de tabu, tal como incesto — e então perguntando se a história envolveu alguma brecha moral, solicitando, em seguida, que os entrevistados explicassem suas opiniões. As histórias foram planejadas de tal forma que nenhum personagem (vivo) fosse maltratado.

Segundo Haidt, algumas pessoas, crescem em comunidades que valorizam mais a coesão social do que a liberdade individual e vice-versa. Desta forma, diferentes grupos interpretam valores morais de diferentes maneiras: algumas veem normas sociais como sinônimo de valores morais; outras veem infrações morais se, e somente se, algum indivíduo for prejudicado. Isso não implica que um grupo esteja certo e o outro errado, embora essa diferença, por si só, explicaria muito sobre as disputas ideológicas que vemos no país e a falta de empatia na hora de dialogar com o outro lado. Se armas são feitas para ferir, e ferir é uma infração moral para alguns, quem se opõe ao armamento da população acredita que quem a defende só pode ter intenções incrivelmente perversas; se usar drogas é uma infração social, quem se opõe à legalização só pode acreditar que quem a apoia são aberrações genéticas que querem destruir os pilares da sociedade.

Mas outro fato observado por Haidt, que achei ordens de grandeza mais intrigante, trata sobre as justificativas ulteriores de cada entrevistado. No exemplo A, Haidt ouviu de algumas pessoas que a mulher cometeu um ato imoral ao rasgar a bandeira, mas quando solicitadas para explicar o porquê, muitas não conseguiam. Ele comenta:

Se alguém dizia, “é errado cortar a bandeira porque algum vizinho poderia ver e se sentir ofendido”, o entrevistador respondia, “bem, aqui na história diz que ninguém a viu fazendo isso. Você ainda mantém que ela cometeu um ato imoral?” Mas mesmo com os indivíduos admitindo que o entrevistador tinha razão, a maioria ainda relutava em aceitar que a ato era OK. Eles diziam: “Eu sei que é errado, só não sei explicar por quê”. Eles estavam moralmente amordaçados.

Se poderia dizer que não é uma questão de confundir regras sociais e morais, mas sim de condicionamento. Se repetirmos a uma criança que rasgar a bandeira nacional é proibido, ela naturalmente achará aquilo errado na idade adulta sem saber explicar o porquê. Quanto a isso, só posso concordar.

Entretanto, o exemplo B envolve um tabu que não faz parte do repertório da educação moral e cívica. Não é como se livros e profissionais de ensino tivessem que reforçar explicitamente a regra “comer animais de estimação é errado” — é até estranho imaginar uma escola que tivesse disciplinas sobre isso. Nós sabemos intuitivamente que isso é errado sem ninguém nos dizer. Apenas observamos que nenhum de nossos conterrâneos comete este tabu (bem, pelo menos não em público) e portanto intuímos ser errado. Sendo assim, se você for como a maioria das pessoas, o exemplo B lhe causará um flash inicial de desgosto, mas finalmente admitirá que a família não infringiu nenhuma regra moral. Afinal, o cão estava morto, ninguém machucou ninguém, e as pessoas fazem isso na China, certo?

Agora partamos para o exemplo C, que causa repulsa em praticamente toda a humanidade. Na grande maioria das pessoas, o primeiro pensamento é algo parecido com “eca, que nojo, nem pensar, isso foi absolutamente imoral e errado”. Explicar o porquê, contudo, é um processo incrivelmente árduo. “Julie pode engravidar e dar a luz a um bebê cheio de defeitos congênitos”. Sim, mas gravidez estava fora de questão já que ambos usaram métodos anticoncepcionais. “Isso mexeu com eles emocionalmente e sua relação nunca mais será a mesma”. Pelo contrário, eles gostaram da experiência e se tornaram mais próximos. “É nojento”. Pra você, talvez, mas não para eles. “É uma pouca vergonha se alguém soubesse”. OK, mas eles estavam sozinhos e ninguém os viu.

Ao meu ver, é como se a mente, quando diante da ação de algum indivíduo externo, precisasse de um parecer urgente se aquilo é moral ou imoral — o que se traduz, de certa forma, em saber se ela está lidando com um potencial aliado ou um membro da tribo inimiga. Mas não há tempo para pensar muito; a Natureza não perdoa delongas. Ao invés de adotar uma postura racionalista para avaliar o caso com cuidado, o cérebro dispara a única região capaz de dar a resposta mais rápida possível para aquela situação: o centro responsável pelo instinto primitivo de aversão ao perigo, como medo ou nojo, seja ele engravado em nosso DNA ou condicionado ao longo da vida.

A velocidade com que o cérebro carece de uma opinião explica por que formamos narrativas completas a partir de uma manchete de jornal e repassamos notícias sem checar os fatos. Kathryn Schulz disse: “nós não angariamos o máximo de evidência possível para chegar a uma conclusão; nós chegamos à máxima conclusão possível nos baseando na mínima evidência possível.”

Isso talvez explique por que Haidt se deparou inevitavelmente com o mesmo resultado. As pessoas condenavam as ações e depois se contorciam retoricamente para tentarem se explicar, frequentemente sem sucesso.

Mas mesmo depois de apontados o erros de raciocínio das pessoas, elas raramente mudavam de opinião. O cérebro aparenta ser constituído de uma parte responsável por atribuir sentido a nossas experiências, integrando as informações sobre o passado e o presente, e sobre nós mesmos e o mundo ao redor; e uma segunda parte, responsável por tentar defender as decisões da primeira e incapaz de fazê-la mudar de ideia. Robin Hanson (The Elephant in the Brain) apelida esses atores em nossas mentes, de maneira apropriada, como o Secretário de Imprensa e o Presidente.

Para observar o raciocínio post hoc (isto é, a racionalização) em plena ação, assista ao secretário de imprensa de um governo lidar com perguntas dos repórteres. Não importa quão ruim seja a decisão política sendo discutida, o secretário sempre encontrará uma maneira de enaltecê-la ou defendê-la. Os repórteres protestarão as afirmativas e trarão à tona frases contraditórias ditas pelo presidente ou até mesmo pelo próprio secretário de imprensa alguns dias atrás. Você poderá ouvir uma breve pausa sem graça enquanto o secretário busca as palavras certas para se defender, mas jamais ouvirá: “Ei, seu argumento é bom! Talvez o presidente devesse mesmo repensar a decisão dele”.

Secretários de imprensa não podem falar um disparate deste simplesmente porque eles não têm o poder de criar ou revisar decretos presidenciais. Seu trabalho é apenas encontrar evidências que expliquem as decisões do presidente.

A razão desse intérprete em nosso cérebro criar narrativas que servem tanto para os outros quanto para o restante do cérebro parece clara. Trata-se de uma ignorância estratégica. William Bailey, o secretário de imprensa da série The West Wing, dizia: “Eu trabalho melhor quando sou a pessoa menos informada da sala”. Enganar a nós mesmos nos permite enganar aos outros com mais facilidade. Nesse contexto, se dermos sinais de que há motivos ocultos por trás de nossas ações ou julgamentos, corremos o risco de parecermos maus ou ignorantes e, assim, comprometermos nossa imagem como um bom aliado.

Isto é o que torna o trabalho do Secretário de Imprensa no cérebro tão perigoso — moral e epistemicamente. Sua função é não somente criar justificativas espúrias como também torná-las difíceis de serem detectadas tanto para as outras pessoas quanto para nós mesmos. O Secretário de Imprensa será sempre extremamente relutante em admitir que o Presidente está fazendo alguma coisa por puro instinto, qualquer que ele seja.

(Não seria apropriado, por exemplo, se o Secretário de Imprensa no meu cérebro admitisse em público que a foto que compartilhei há pouco Facebook de uma entidade beneficente não tinha o propósito de divulgação; a motivação do Presidente no meu cérebro era, no fundo, transmitir minha imagem de pessoa altruísta e boa e, portanto, um bom aliado. Tampouco gostaria que meu Secretário de Imprensa admitisse que estou publicando um texto em meu blog esperando ser elogiado pelas pessoas que admiro e, consequentemente, ser validado por elas — ele dirá, ao invés disso, que estou contribuindo com a causa de um mundo mais racional e tolerante. De forma análoga, todos os políticos farão questão de frisar nas entrevistas que estão lutando para aprovar/barrar reformas polêmicas para o bem de todos; jamais admitirão que o resultado simboliza uma vitória ou derrota para sua tribo e, consequentemente, seu ego — votações de projetos simbolicamente neutros para suas tribos, mas igualmente importantes para o país, não seriam tão exaltados).

O nível de educação de uma pessoa não lhe confere anticorpos contra esse viés cognitivo. Em um estudo, foi descoberto que, inconscientemente, professores universitários nos Estados Unidos que eram democratas tendiam a selecionar menos currículos de candidatos republicanos e vice-versa. Em outro estudo, indivíduos eram entrevistados se eram a favor ou contra alguma pauta controversa (como legalização do aborto, por exemplo). Depois eram solicitados a escrever o maior número possível de argumentos a favor e contra sua opinião. Como era de se esperar, todos escreveram mais argumentos a favor do que contra si próprios. Ao final do estudo, constatou-se que o QI dos candidatos não se correlacionava com o número total de argumentos escritos, mas sim com o número de argumentos que justificavam sua opinião. Ser inteligente significa que seu Secretario de Imprensa interior é muito bem articulado, mas não diz nada a respeito do seu Presidente.

Freud defendia, no século XX, que a relação entre o ego e o id é a mesma que um cocheiro e seus cavalos: o cavalo fornece a energia e o ímpeto, enquanto o cocheiro fornece a direção. Mas Humes, três séculos antes, propunha que “a razão é, e só pode ser, escrava das paixões; só pode pretender ao papel de as servir e obedecer a elas.” No final, Freud estava errado e Humes certo. A mente humana, nas palavras de Haidt, é como um jóquei montado sobre um elefante. O jóquei acredita tanto saber para que lado deve conduzir o elefante quanto ter soberania sobre a dupla; mas a vontade final será sempre a do elefante, e caberá ao jóquei apenas aceitar a vontade do animal. E caso o elefante decida parar para comer uma flor ao invés de virar à esquerda, por exemplo, o jóquei terá uma desculpa perfeitamente racional: “Decidi parar pois precisávamos descansar, oras”.


Por que, afinal, desenvolvemos essa estranha arquitetura mental? À medida que os hominídeos triplicaram o cérebro em volume nos últimos milhões de anos, desenvolveram a linguagem e capacidade de raciocínio lógico, por que evoluímos um secretário de imprensa interior ao invés de um juiz interior ou um cientista interior? Não seria mais vantajoso, do ponto de vista evolutivo, saber a real verdade sobre quem fez o que e por quê, ao invés de usar todo o processamento cerebral para encontrar evidências que suportassem aquilo que queriam acreditar? A resposta depende do que você acredita ter sido mais importante para a sobrevivência de nossos ancestrais: a verdade ou a reputação.

As adaptações neurológicas que garantiram a sobrevivência da nossa espécie no ambiente ancestral, hoje são responsáveis por discussões políticas gerarem mais calor do que luz. Uma triste ironia, já que os planos para se construir um futuro pacífico e democrático para todos deveriam ser fundamentados em debates racionais, não em guerras tribais.

Mas o fato de sermos péssimos racionalistas não significa que devemos evitar a política para sempre; que você deva desviar o olhar de injustiças sendo cometidas por governos autoritários e evitar lutar por um mundo melhor para todos. Também não significa que a verdade seja relativa e que todas as opiniões estejam corretas (ou incorretas). Não acredito em utopias. Espero, apenas, ter convencido o Secretário em seu cérebro de que existem caminhos mais inteligentes por onde se discutir política, mas que, graças à nossa natureza e aos nossos vieses cognitivos, tomamos, na grande maioria das vezes, o atalho mais estúpido.

Por fim, não somos calculadoras; temos o dom da razão, mas inevitavelmente também o da emoção, e lutar contra nossa própria natureza não deixa de ser uma missão quixotesca. Se política é um esporte em grupo, política racional é como jogar Tetris sozinho. Portanto, divirta-se com os memes, e guarde os debates realmente sérios para o contexto, momento, local e pessoas certas. Se um amigo extremista tentar pregar para cima de você, simplesmente ignore. Você não pode mudar o comportamento das pessoas, mas você pode escolher como responder a elas.

E por favor, fique longe das redes sociais.

Num próximo ensaio dessa série, tentarei abordar os principais aspectos de como discutir pautas políticas de forma racional e quais as condições necessárias para tal.

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