Nébula Rasa

Comendo Animais

Título:
Eating animals
Autor:
Jonathan Safran Foer
Ano:
2009
ISBN:
OL23944175M
Idioma:
eng
Nota:
4/5

Era um típico almoço de domingo em família. Meu irmão (vegano) e eu (ex-vegetariano, e certamente não-vegano) brigávamos sobre a mesa a respeito de quais alimentos tinham maior potencial carcinogênico—o tipo de discussão saudável que todas as mães devem adorar nos almoços em família. A discussão havia começado depois de vê-lo encher seu prato de tofu com fumaça líquida, um dos temperos favoritos dos veganos, defendendo que aquilo era mais saudável do que um filé de salmão grelhado. Ele observou que a população vegana é menos acometida por câncer em geral do que todas as outras populações, incluindo pescetarianos (vegetarianos que comem peixe ocasionalmente). Como um bom irmão mais velho, senti-me obrigado a ensiná-lo uma boa lição. Nada pode ser mais saudável do que salmão. Sempre me disseram que frutos-do-mar são cápsulas escamosas e fedorentas de óleo precioso que desobstrui artérias.

Abri então o Google Scholar e, uma hora depois, admiti minha derrota. Os veganos tinham realmente menor incidência de câncer até mesmo quando comparados a vegetarianos estritos. Mais ainda, os estudos sobre diabetes tipo 2, doenças cardíacas, obesidade e longevidade foram tão convincentes que decidi experimentar o veganismo por um tempo para ver “qualé que é”. E tenho me sentido ótimo até agora. Mas apesar dos benefícios do estilo de vida vegano à saúde, senti que seria necessário um empurrão moral se quisesse mesmo mudar meus hábitos a longo prazo. Foi assim que comecei a ler Eating Animals de Jonathan Safran Foer. O cara é formado em filosofia, e esse era exatamente o tipo de abordagem que eu buscava.

Fui vegetariano por boa parte da minha vida adulta, até que de repente não era mais. (É engraçado como um inofensivo filé de peixe pode ser uma porta de entrada para todo o setor de carnes do supermercado se você for descuidado.) Mas, durante os anos em que evitei carne, as pessoas me perguntavam sobre minhas razões e eu sempre citava motivações políticas e ambientais . Há ampla evidência de que a degradação ambiental e corrupção andam de mãos dadas quando se trata de agricultura industrial. E a causa animal não estava na minha lista de razões porque eu acreditava (e acredito) que a morte seja uma coisa natural. Na verdade, todos aqueles argumentos do tipo “não devemos comer animais” não ressoavam em mim. Pura lei da natureza; por que seria errado comer outra espécie para sobreviver?

O problema é que essa pergunta retórica é erguida sobre duas premissas falaciosas. Primeiro, as pessoas hoje em dia comem menos carne para sobrevivência do que por mera gula. A dieta mediterrânea é um exemplo claro de como se deve comer para melhorar a saúde e aumentar a longevidade, e suas diretrizes recomendam meia dúzia de vezes menos carne do que o brasileiro médio está acostumado a consumir. No entanto, enchemos nossos buchos com asinhas fritas de frango até que nossas artérias se congestionem para, em seguida, tomarmos remédios que nos permitam enfiar mais asas de frango guela abaixo. Em segundo lugar—e eu não esperava que um livro sobre uma verdade inconveniente pudesse me deixar tão abalado—a pergunta do parágrafo anterior aborda apenas uma parte do problema: não se trata de como um animal morre, mas de como ele vive em primeiro lugar.

Tomemos as galinhas poedeiras, por exemplo. Elas não são criadas para serem abatidas (intencionalmente), mas o trabalho de investigação que Jonathan fez para seu livro mostra que um pequeno galpão pode abrigar mais de quinze mil pássaros geneticamente modificados, cada um prensado em uma gaiola do tamanho de uma tablet, sob ciclos perpétuos de luzes ofuscantes e escuridão total, bem como períodos de fome e alimentação forçada. Vale tudo para otimizar a produção de ovos. Eu escrevi “intencionalmente” antes, porque uma boa porcentagem desses animais morre devido ao estresse. (Há também o caso de pintinhos machos, que são inúteis dentro do contexto da produção de ovos, então são moídos vivos e se tornam ração para suas próprias mães. Mas isso é outra história). Se fosse dada a escolha, eu acho que qualquer pessoa sensata prefereria a morte de um ente querido do que condená-lo a anos de tortura initerrupta. Embora comprar ovos não signifique necessariamente que estamos matando outro animal, no contexto da agricultura industrial seria mais humano se o fizéssemos.

Mas os animais criados com o propósito único de serem abatidos não estão em melhor posição. Porcos vivem em condições tão deploráveis ​​que seus dentes devem ser arrancados pelos veterinários para evitar o canibalismo, já que a maioria deles ficam completamente loucos—e nem sequer estão na lista dos animais com piores destinos. “A natureza também pode ser cruel às vezes”, costumam me dizer, e é verdade. Mas ninguém nunca verá leões na TV matando suas presas com choques elétricos na boca e no ânus, ou raposas escaldando galinhas vivas porque seucortador automático de garganta na linha de produção estava com defeito, e consertá-la o mais rápido possível seria um gasto de dinheiro desnecessário. Portanto, não, na natureza não chega nem perto das condições terríveis que os animais de criação industrial são forçados a viver—se o verbo “viver” for apropriado para a situação.

Quando coloquei minhas mãos neste livro, fui ingênuo o suficiente em acreditar que ele abordaria o veganismo sem apelar para exemplos gráficos de sofrimento animal. E, de fato, ele conseguiu evitá-los nos primeiros capítulos. Mas você não pode abordar aspectos filosóficos como “bem-estar universal” e “como ele deve ser estendido a todos os seres sencientes” sem, eventualmente, confrontar o status quo; a crueldade já está institucionalizada. As Common Farming Exemptions (CFE) nos Estados Unidos são uma prova dessa afirmação. A função das CFEs é legalizar o que só poderia ser rotulado como crime, mas uma vez cometido dentro do contexto industrial, não há o menor impedimento legal. Assim, atos de crueldade que condenariam qualquer pessoa física caso fossem cometidas contra um animal de estimação são totalmente permitidos se praticados em animais dentro do contexto industrial. Do outro lado da cadeia, os consumidores são levados a desviar o olhar, seja por propaganda enganosa com vacas felizes e funcionários sorridentes de jaleco branco, por rótulos “humanos” e “orgânicos” que não contam a história toda, ou por ordens de sigilo e leis que proíbem a gravação de imagens nessas fábricas.

Há um velho ditado que diz: “se você não faz parte da solução, faz parte do problema”. Eu não iria tão longe, tampouco Jonathan parece fazê-lo. Não achei que seu tom fosse acusatório em momento algum do livro. Na realidade, ele entrevista pessoas envolvidas na cadeia de produção e com opiniões diametralmente diferentes, sempre ponderando-as de maneira bastante racional. Um ponto de vista bastante interessante contido no livro, por exemplo, parte de um fazendeiro vegetariano que acredita ser incapaz de lutar contra o sistema. Ele, vegetariano, decidiu abrir seu próprio abatedouro para que pudesse garantir uma vida digna para o seu gado. Argumentos a favor e contra premissas como essa são abundantemente e inteligentemente discutidos ao longo do livro.

A única crítica que tenho a este livro (e a razão de não conferi-lo 5 estrelas) diz respeito às partes onde o autor decidiu entrar no mérito da medicina. Não que os argumentos de saúde com que o autor se arma sejam mentirosos, longe disso. Ele fez sua lição de casa. Mas como é mais do que comum nesse tipo de debate, alguns pontos-chave foram omitidos. Já sabemos que os veganos têm saúde tão boa ou melhor do que os onívoros em quase todos os aspectos, mas existem poréns: os veganos são mais propensos à deficiência de vitamina B12 e de cálcio, de tal forma que as pessoas que fazem dietas à base de plantas são incentivadas a suplementar estes nutrientes. E, se não me engano, os estudos mais recentes apontam que parte dos benefícios de uma dieta vegana deriva mais da abundância de plantas (e consequentemente fibras) do que da ausência de carne. Nesse sentido, uma dieta equilibrada e rica em vegetais deve ser tão saudável quanto aquela baseada em vegetais, e isso não é mencionado em nenhum lugar do texto.

Mas o maior escorregão na minha opinião foi a sugestão implícita do autor de que não devemos nos preocupar com a ingestão de proteínas. Ele escreve: “O artigo [da American Dietetic Association ] observa que vegetarianos e veganos (incluindo atletas) atendem e excedem os requisitos de proteína”. Entretanto, o documento mencionado afirma que os atletas podem atender às suas necessidades de proteínas em dietas à base de plantas com supervisão adequada. Qualquer pessoa que leve esporte a sério sabe que consumir proteína suficiente para manter o equilíbrio de nitrogênio no corpo não é tão simples quanto Jonathan faz parecer, mesmo para onívoros. E em termos de proteínas, os estudos de hoje tendem a convergir para um requisito diário um pouco mais elevado do que o que se acreditava no passado. Atingir tais metas diárias de proteína sob um regime de treino rigoroso pode ser um martírio—principalmente se você for vegano e tentando perder peso, acredite. Mas, apesar de tudo, o assunto ainda é uma fonte de debates incendiados entre a própria comunidade médico, então o autor pode ser perdoado por uma gafezinha dessas.

Conclusão

Em termos gerais, os argumentos a favor do veganismo neste livro são sólidos tanto sob a ótica ambiental, quanto pela social e filosófica. Eu acreditava que ser vegano pelo bem-estar animal era puro sentimentalismo, mas este livro me fez mudar de opinião. O bem-estar de animais não-humanos deve estar obrigatoriamente no centro do debate. Mesmo que, hipoteticamente, a indústria pudesse produzir o bife mais saudável e ambientalmente sustentável já produzido, tais argumentos seriam insuficientes se os animais ainda fossem submetidos a condições nefastas de sobrevivência. E lutar pelo bem-estar animal é, acima de tudo, um sinal de maturidade. O autor diz: “Dois amigos estão pedindo o almoço. Um diz: ’Estou com vontade de comer um hambúrguer’ e pede. O outro diz: ’Estou com vontade de comer um hambúrguer’, mas lembra que há coisas mais importantes na vida do que aquilo que satisfazer a gula, e pede outra coisa. Quem é o sentimentalista?”.

No final, eu gostaria de escrever uma resenha que, caso você pensasse em adotar um estilo de vida sem carne, pesaria mais prós do que contras. Mas a verdade é que tornar-se vegano será um jornada no mínimo inconveniente. Você será provavelmente o único a levar legumes para o churrasco dos amigos do trabalho; as pessoas jogarão falácias em você constantemente e tentarão fazer você se contradizer em público; ou você será falado pelas costas sobre seus novos hábitos alimentares estranhos. Considere como a humanidade é liderada pela mentalidade tribal. Voltar-se contra o sistema faz de você um estranho para mais de 98% da população. De acordo com o autor do livro:

“Compartilhar comida gera bons sentimentos e cria laços sociais [… mas] se você for um hóspede, fica desagradável recusar refeições preparadas para você, especialmente quando os motivos de recusa são éticos. Quão desagradável? Trata-se de um dilema clássico: quanto você valoriza criar uma situação socialmente confortável e quanto valoriza ​​agir de forma socialmente responsável? "

A resposta a essa pergunta foi, na minha opinião, brilhantemente dada pela avó de Jonathan, uma sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que, segundo consta, era só pele e ossos enquanto vagava pelas florestas da Europa para escapar dos nazistas. Ela diz a ele:

“O pior foi o fim. Muitas pessoas morreram no final, e eu não sabia se conseguiria sobreviver outro dia. Um fazendeiro, um russo, que Deus o abençoe, viu minha condição, entrou em casa e saiu com um pedaço de carne para mim. "

“Ele salvou sua vida.”

“Eu não comi.”

“Você não comeu?”

“Era porco. Eu não comeria porco”.

“Por quê?”

“Como assim por quê?”

“O que, porque não era kosher?”

“Claro.”

“Mas nem mesmo para salvar sua vida?”

“Se nada mais importa, não há o que salvar.”

Veja também

Links para esse post