Uma vacina anti-memética
Outro dia me deparei com um post no Twitter feito pelo usuário danyokomizo, onde ele elaborava sobre a natureza dos memes e seu impacto no nosso poder de raciocínio. Achei oportuno explorar o assunto, pois ao trazer à luz os paralelos entre os memes e vírus, talvez possamos criar uma vacina anti-memética.
I
No fio, Yokomizo observa que o meme é o perfeito análogo de um vírus, tal como proposto primeiramente por Richard Dawkins em O Gene Egoísta de 1976. A ideia é antiga, mas Yokomizo traça paralelos convincentes sobre a natureza desses agentes contagiosos. Por exemplo, é observado que tanto o meme quanto o vírus carecem da capacidade de se reproduzir por conta própria. Eles não são organismos vivos, mas simples unidades de informação que necessitam de um hospedeiro com capacidade de replicação para que possam se multiplicar. Contudo, ao passo que o vírus físico se aproveita da maquinaria de nossas células para multiplicar seu RNA, o vírus memético sequestra nossa cognição e habilidades de comunicação. O que se propaga é o RNA do próprio meme (sua mensagem) e não nosso material genético (nossos valores pessoais).
A transmissão de memes pode acontecer através da escrita, fala, desenhos, imagens, gestos; pessoalmente ou à distância. Uma vez havido a infecção, boa parte da nosso poder de raciocínio é deixado em segundo plano e nossa capacidade de atenção é roteada para o meme. Pessoas infectadas absorvem o meme e o incorporam em suas crenças sem qualquer questionamento. Os sintomas podem variar desde satisfação até uma sensação calorosa de que o mundo é claro e cristalino como o meme faz parecer; as incertezas não existem, não é preciso pensar, apenas compartilhar.
Algumas pessoas são capazes de resistir a memes por mais tempo, dependendo de sua resiliência epistêmica e do conteúdo e formato memético. Tais indivíduos pensam duas vezes antes do meme criar raizes em suas mentes. Mas cargas virais cada maiores, em forma de imagens ou vídeos que apelam para nossos sentimentos e que são fáceis de compartilhar, acabam minando o sistema imunológico. Você já pensou duas vezes antes de encaminhar um vídeo de gatinho fazendo coisas engraçadas? E antes de incorporar uma carga extra de ódio contra sua tribo rival? O coup-de-grâce ocorre quando a sedução do meme se une à necessidade do indivíduo de se conformar a um grupo — é o vírus oportunista indo ao encontro do hospedeiro com sistema imunológico debilitado.
Os efeitos colaterais causados pela infecção de um meme são tão poderosos que até mesmo nossos valores pessoais podem acabar sendo subvertidos, caso sejam incompatíveis com o meme recém-instalado. Quando (se) nos curamos, somos incapazes de lembrar por que defendíamos aquelas ideias com tanta agressividade.
Se o modelo viral representa quase fielmente o funcionamento de um meme, podemos esperar as seguintes características:
- Memes podem se agrupar e formar complexos (memeplexos), tal que juntos tem potencial de propagarem-se de forma mais eficiente;
- A aptidão evolutiva de um meme pode depender do ambiente e contexto; um meme pode ser bom, mas se surgir cedo ou tarde demais, pode desaparecer;
- Memes com boa aptidão evolutiva não são necessariamente verdadeiros nem úteis—apenas são bons em se multiplicar;
- É possível que memes inaptos para alguns ambientes sejam aptos para outros; basta possuir as características pertinentes para a sobrevivência naquele ambiente específico (vide espécies invasoras).
II
O monoteísmo judaico-cristão-muçulmano é um dos maiores exemplos de memes bem-sucedido. Seria injusto da minha parte compará-lo a um vírus, sobretudo porque, ao contrário de um patógeno nocivo, a prática religiosa pode melhorar o bem-estar subjetivo.1 Mas, independentemente dos efeitos colaterais, as três maiores religiões do mundo são um bom exemplo de meme no sentido de se multiplicar com facilidade. E apesar do esmero de autores neo-ateus contra as grandes religiões, não há o indício de que seus ataques estejam sequer arranhando sua popularidade.
Desde a Revolução Industrial, quando os seres humanos passaram a se aglomerar e aumentar seu grau de exposição a patógenos, testemunhamos epidemias de diversos vírus potencialmente perigosos para a nossa existência. Repetidas exposições ao risco existencial levará à nossa extinção se não soubermos como combatê-lo.2 Dessa forma, talvez seja hora de pensarmos em uma arma para combater memes que se tornam perigosos demais. Na medicina, não se combate vírus com outro vírus; logo, não se vence um meme com outros memes. Precisamos de um método eficiente de atacá-los; uma abordagem racional e analítica, conhecendo suas falhas para ensinar ao corpo vulnerável a combatê-los.
Em menor escala mas igualmente meméticas são as ideologias políticas da atualidade. As dezenas de agências de fact checking dedicadas a desmontar falácias não só falharam em suas missões, como novos memes surgiram para minar a credibilidade dessas agências.
Analisar um meme e ensinar os indivíduos a reconhecer falácias pode parecer a melhor estratégia num primeiro momento, mas a historia mostra que o sucesso profilático dessa abordagem é questionável. E se, ao invés disso, inoculássemos as ferramentas necessárias para combater memes em um veículo psicologicamente contagioso?
Eu disse anteriormente que não combatemos memes com outros memes por não ser assim que lidamos com vírus no mundo físico. Eu menti. A verdade é que a medicina moderna, sim, combate vírus com outros vírus.
Logo que li aquele post no Twitter sobre como memes são infecciosos, senti algo diferente. eu mal havia sido exposto àquela informação e já havia me sentido eufórico com a ideia, propenso a espalhar a informação para todos à minha volta. Eu havia sido infectado por um meme que ataca outros memes.
A ideia de comparar tão perfeitamente os memes a um vírus pode ser justamente o meme que a humanidade precisa para combater outros memes. Minha hipótese sobre é que essa comparaçãoe acena para um dos nossos instintos primordiais de sobrevivência: a aversão a infecções. Ao comparar tão brilhantemente os memes aos vírus, o leitor se torna inconscientemente mais alerta e disposto a comunicar os outros indivíduos da tribo sobre o perigo que paira no ar. A parte curiosa é que essa possível vacina anti-meme é, em si, um meme, pois: - é infecciosa (acreditei sem pensar no assunto); - usa minhas peças para se instalar (minha repulsa instintiva a doenças); - é altamente contagiante (quis compartilhar com outros contatos e até fiz um artigo no meu blog sobre isso).
A vacina anti-memética pode existir e se tornar uma realidade. Por amor aos nossos valores pessoais e à nossa racionalidade epistêmica, protejam-se contra os memes. Eles envenenam os debates e desarmam nossa capacidade de julgar com a razão. Sejam mais críticos. Aprendam sobre falácias. Espalhem a mensagem.
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KOENIG, Harold G.; COHEN, Harvey J. (Ed.). The link between religion and health: Psychoneuroimmunology and the faith factor. Oxford University Press, 2002. ↩︎
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NORMAN, J.; BAR-YAM, Y.; TALEB, N. N. Systemic risk of pandemic via novel pathogens – Coronavirus: A note. New England Complex Systems Institute, 26 jan. 2020. Acesso em: 27 fev. 2020. ↩︎