Nébula Rasa

O pássaro adivinho contra Reverendo Bayes

Figure 1: David Teniers - The Temptation of St. Anthony (1670)

Figure 1: David Teniers - The Temptation of St. Anthony (1670)

No quesito beligerância gratuita, personagens do folclore brasileiro jantam com farofa qualquer outro ser da mitologia gringa. Desculpem-me, mas isto não é uma simples hipérbole; é a mais pura e calibrada verdade. Uma onça maneta – maneta! – que protege a selva amazônica inteira; cetáceos que inseminam garotas incautas; mulas decapitadas cuspidoras de fogo que devoram adúlteros. Admita: nossas criaturas fazem as sagas nórdicas parecer um teatrinho de vogais.

E segue aqui um causo que juro não ser lorota de pescador. Eu estava lá. Aconteceu em 1761 e assim como todo conto sobre criaturas mágicas, este também envolve pessoas com sotaque britânicos.


O reverendo presbiteriano Thomas Bayes marchava a passos mansos pela mofada Cock Lane em Londres, admirando a paisagem local. De repente, um cartaz verde, amarelo e azul fisga sua atenção. Era uma explosão de cores que rachava ao meio o cenário cinzento amarronzado daquela viela londrina. O cartaz era de uma companhia de turismo, Ye Olde Travel e trazia os dizeres (traduzido para o português) “Explore a phantástica selva do Brazil”.

Há muito o reverendo planejava conhecer o Novo Mundo. Houvera contribuído o suficiente para a Inglaterra com seus estudos de estatística e probabilidade, que muitos anos mais tarde seriam conhecidos como Teorema de Bayes e revolucionariam a Matemática. Agora, era hora de se lançar ao mundo e aproveitar a vida. Uma expedição bandeirante por terras bestiais soou como uma boa ideia de férias relaxantes para a terceira idade.

Depois de algumas semanas cruzando o oceano, Bayes encontrava-se agora hospedado na estância onde viva um tal Senhor Dom Florêncio Eusébio Queiroz Braga e Cunha. Empreendedor de sucesso e pessoa finíssima, acabara de convencer, diplomaticamente, uma tribo local a ceder seus lares em chamas para a criação de um bed & breakfast para turistas europeus.

Bayes estava se preparando para o seu primeiro dia de trilha na estância. O sol havia acabado de nascer e a névoa típica das regiões úmidas do interior serrano ainda não tinha se dissipado. O estatístico inglês não estava só. Uma dúzia de pessoas compostas por biólogos naturalistas (não naturistas) e desenhistas europeus, enviados por suas cortes, eram guiados por Dom Florêncio. Depois de algumas horas de caminhada mata adentro, um pássaro começou a cantar bem acima das cabeças dos exploradores. “Não vos assusteis, mas esse formoso pássaro”, disse o Dom, “é capaz de adivinhar se hei de receber visitas em minha humilde estância.”

Segundo Dom Florêncio, o pitiguari ou gente-de-fora-vem (Cyclarhis gujanensis) é um ser clarividente com poderes mágicos. Quando o pássaro prevê que seus amigos ou parentes estão vindo visitá-lo, ele traz a notícia cantando nas janelas da sua cozinha. Se ele cantar em direção à sala-de-estar, um estranho está chegando. Finalmente, se ele canta na janela do seu quarto, um viajante lhe pedirá uma cama para pernoitar. (A crendice popular não deixava claro se “estranho” e “viajante” são categorias independentes, apesar de viajantes poderem ser tanto estranhos quanto conhecidos.)

Figure 2: Esboço da criatura bestial. William Swainson (1789-1855).

Figure 2: Esboço da criatura bestial. William Swainson (1789-1855).

— E o passarinho, criatura majestosa, está sempre certo. — completou o Dom enquanto afinava a ponta do bigode.

O problema era que reverendo Bayes tinha alergia a superstições, e cada palavra daquele homem pousava em sua pele como partículas de pó-de-mico. Voltando para o alojamento, sentia como se tivesse rolado na grama, coçando-se dos pés à cabeça com questionamentos. Para começar, o que ele queria dizer com “sempre certo”? Que as previsões da ave são corretas 100% das vezes ou que ela está 100% confiante de que a ave possui poderes sobrenaturais? Quão sólida deve ser a evidência para levar essa história a sério? E se ele estiver certa? Poderia este pássaro ser o pet perfeito para videntes, donos de hospedarias e pessoas com fobia social?

A tabela abaixo mostra todos os cenários possíveis do pássaro cantante, exceto nos dias em que ele canta e ninguém aparece. Itens em negrito são verdadeiro-positivos, isto é, quando o pássaro prevê corretamente a categoria de visitante.

Posição do pássaro Visitante
quarto estranho
sala estranho
cozinha estranho
quarto conhecido
sala conhecido
cozinha conhecido
quarto viajante
sala viajante
cozinha viajante

É possível simplificar um pouco este espaço amostral. Alguém já viajou para alguma cidade turística e bateu à porta de um estranho qualquer pedindo para dormir em sua casa? Aquilo soou estranho até para o reverendo. Ele concluiu que quando se oferece uma cama a um visitante, quase certamente ele ou ela é um conhecido. Portanto, tratou de ajustar o espaço amostral para esta realidade. Dessa forma o problema ficou reduzido a um classificador binário cuja entrada é a direção para onde o pássaro canta e a saída é estranho ou não-estranho.

Posição do pássaro Visitante
sala estranho
quarto não estranho
cozinha não estranho

Observe que mesmo que o pássaro tenha tantos poderes mágicos quanto um copo de iogurte desnatado, e estranhos sejam tão prováveis ​​de aparecer quanto não-estranhos, o pássaro estaria correto 66% do tempo sem derramar uma gota de suor.

Porém, Dom Florêncio residia longe de qualquer ser humano. Segundo ele, a dezenas de quilômetros do vilarejo mais próximo, em uma casarão de feito com mão de obra totalmente legal, mas sobretudo fora do alcance de carteiros, vendedores ou testemunhas de Jeová, que nem existiam naquela época. A esmagadora maioria das pessoas que chegam à seu casarão são familiares e amigos (não-estranhos). Bayes estimou que uma proporção de estranhos para não-estranhos mais coerente seria de cerca de 1:50.

\begin{equation} \frac{p(\text{estranhos})}{p(\neg\text{estranhos})} = \frac{1}{50} \end{equation}

Sim, assim parece melhor. Mas o casarão de Dom Florêncio era grande o suficiente para comportar uma pequena infantaria inteira. E os cômodos tinham números diferentes de janelas.

Cômodo Janelas
quartos 4
sala 2
cozinha 2

Sendo assim, a probabilidade do pássaro cantar aleatoriamente em cada cômodo é dada pelas razões:

\[ p(\text{quarto}) = \frac{4}{8} = \frac{1}{2} \] \[ p(\text{sala}) = \frac{2}{8} = \frac{1}{4} \] \[ p(\text{cozinha}) = \frac{2}{8} = \frac{1}{4} \] \[ p(\text{quarto ou cozinha}) = \frac{6}{8} = \frac{3}{4} \]

Contabilizando a proporção correta de janelas e tipo de visitantes, a precisão é calculada da seguinte forma:

\begin{equation} \text{precisão} = \frac{1}{50} \times \frac{1}{4} + \frac{49}{50} \times \frac{3}{4} \simeq 0.75 \end{equation}

Se o que Dom Florêncio quis dizer com “o pássaro está sempre certo” for, na verdade, “o pássaro acerta a maioria das vezes”, então o reverendo daria o braço a torcer. O pássaro provavelmente acerta mais do que erra, mas não por razões mágicas. Mesmo que a ave escolha aleatoriamente uma janela para cantar, a precisão da ave ainda é acidentalmente boa (75% ou 3/4) devido ao desequilíbrio de classes (há muitos mais estranhos do que não-estranhos aparecendo a qualquer momento).

Agora, suponha que Dom Florêncio estivesse se referindo à confiança irresoluta dele no pássaro. Suponha também que num determinado dia o pássaro cante na direção das janelas da sala. “Darei uma canja”, pensou Bayes em inglês britânico. Ele entendia que se o homem sugeriu estar 100% confiante de que o pássaro adivinharia o tipo de visitante, na verdade quis dizer 95%, que já soava bastante absurdo. Quanta evidência seria necessária para um grau de confiança de 95% de que pássaro adivinharia o tipo de visitante? (Isto é, 20 vezes mais chances do pássaro estar certo do que não estar). Qual deve ser o histórico de acertos do pássaro?

\begin{equation} \frac{p(\text{estranho}|\text{sala})}{p(\neg\text{estranho}|\text{sala})} = \frac{\text{acertos}}{\text{erros}} \times \frac{1}{50} = 20:1 \end{equation}

\begin{equation} \frac{\text{acertos}}{\text{erros}} = 4000:1 \end{equation}

Se Dom Florêncio pretendia ter 95% de certeza de que um estranho está chegando, a ave deveria ter um placar de 4.000 acertos para cada erro – o que era absolutamente improvável de ter acontecido.

Mito detonado, alergia curada e respirando aliviado. Reverendo Bayes estaria pronto para o que desse e viesse novamente. Com apenas 59 anos, ainda tinha muito que ver e viver. “Que venha o tal boto-cor-de-rosa agora”, disse para si mesmo sorridente e com ar confiante.

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