Nébula Rasa

Estatística, gráficos e gatinhos

Consultando a bibliografia e analisando evidências passadas, cheguei a uma conclusão perturbadora: Deus matará meu gatinho ano que vem e sua arma será o Teorema de Bayes, aquele frade safado.

Se você é novo pelas redondezas, saiba que existem duas coisas que mais me agradam além de números, sorvetes e travesseiros; essas duas coisas são gatinhos e vida no campo, e eu tento mantê-las de mãos dadas até onde é possível. O sítio da família serve de lar permanente para minha coletânea de gatinhos, mesmo que eu permaneça lá apenas nos fins de semana. Eles, assim como eu, parecem apreciar muito a rotina ao ar livre.

Mas nem tudo são cenários bucólicos com cheiro de lavanda. Àquelas pessoas com uma paixão patológica por felinos, preparem-se para a mais recente descoberta do mundo científico: estatísticas indicam que 10 entre 10 gatos domésticos morrem algum dia. Eis o meu quadro de entrada e saída de gatinhos nesse mundo desde o ano em que estabeleci contato com esses adoráveis bichanos. As fotos descoloridas são os que pediram truco na mão de onze.

Figure 1: Sumário de Gatinhos Vivos e Mortos

Figure 1: Sumário de Gatinhos Vivos e Mortos

Preocupado com o bem-estar dos que restaram, decidi investigar o que se passa nos blueprints do Universo e por que Deus está tão empenhado em assassinar meus animais de estimação. Uma maneira de arriscar palpites é empunhar das ferramentas que a Estatística se faz valer.

Avaliando os óbitos passados

Pesquise no Google sobre a expectativa de vida de gatos domésticos. Nos sites estadunidenses, o valor gira em torno de 15 anos. Nos brasileiros, em torno do que os sites estadunidenses giram. Antes de usarmos este valor como chute inicial, precisamos ser críticos sobre sua aplicabilidade ao nosso espaço amostral. Tomando gatos domésticos urbanos equivalentes como exemplo, haveria diferenças entre os indivíduos de um país e outro devido a fatores como qualidade das rações, renda disponível dos donos para cuidados com veterinário, doenças tropicais que não existem nos países temperados, etc. Além disso, a realidade de um gato de apartamento em Nova York não reflete necessariamente o capiau peludo que persegue gambás em um sítio no interior do Brasil.

Portanto, tomei como referência a expectativa de vida de um país de terceiro mundo parecido com o nosso, o México, que é de 10 ± 2 anos. Temos então que a expectativa de vida dos gatinhos deve ser uma distribuição normal com média = 10 e desvio padrão = 2. No entanto, este valor difere de longe do que se observou no sítio da família. Embora as gatas tenham uma longevidade compatível com essa média (Gertrudez, por exemplo, viveu 12 anos), os machos têm mostrado uma tendência a morrer muito mais cedo. Em boa parte do mundo animal, de fato, as fêmeas vivem mais que os machos.

O mecanismo por trás de tal discrepância é complexa, mas se existe uma máxima irredutível da nossa realidade é que quanto mais V1Da L0Ka é o animal, menores são suas chances de sobrevivência. Minha hipótese é a de que há uma função de longevidade diferente entre os gatos machos e fêmeas, uma vez que elas ficam boa parte do tempo dentro de casa, enquanto os machos rondam o terreno, adentram-se no mato, brigam com outros machos, deparam-se com animais peçonhentos e dirigem bêbados de volta para casa.

Logo, a curva que descreve a longevidade das gatas é uma gaussiana bastante trivial. A curva dos gatos machos exigirá um pouco mais de capricho, pois deveremos utilizar as informações sobre longevidade de gatos de rua – que têm um comportamento compatível com os gatos machos do sítio – com as evidências testemunhadas ao longo dos anos.

Probabilidade bayesiana

Se trabalharmos nos moldes da estatística de Thomas Bayes, o presbítero matemático, é possível atualizar uma hipótese apriorística de acordo com novas observações, chegando a uma hipótese a posteriori que se aproxima mais da realidade.

Neste caso, minha crença inicial sobre a expectativa de vida sobre os gatos machos vem do sumário de um artigo acadêmico. Foi observado que em determinado grupo de gatos de rua, o tempo de vida variou de 0 a 8.3 anos. Como não sei bulhufas sobre a distribuição dessa estatística, adotarei esse par de valores como um mínimo e um máximo de uma distribuição uniforme.

\[ \text{Hipótese inicial: Idade máxima (machos)} \sim \text{Uniforme}(0,8.3) \]

Para melhorar nosso conhecimento sobre a curva verdadeira, gostaria de atualizar esta crença com dados observados desde 2007 no sítio da família. A opção que escolhi foi aproximar o histograma de mortes a uma distribuição normal com um coeficiente T de Student para 2 graus de liberdade.

\[ \text{Evidência: Idade máxima (machos)} \sim \text{T-Student}(\mu=1.2,\sigma=0.3,df=2) \]

Pronto, ferrou. Se você jogar esta distribuição num gráfico, perceberá que tanto a curva normal engordou além do que os médicos recomendam – devido a nossa incerteza resultante do espaço amostral com apenas 3 gatinhos –, como uma das caudas da curva ultrapassa o zero.

É impossível um gato viver uma quantidade negativa de anos, portanto o bom senso mandaria “espremermos” a curva contra o eixo y e renormalizá-la; sem deixar a cauda tomar um valor negativo e de tal forma que sua integral até o infinito seja igual a um. Para contornar todos esses obstáculos numa tacada só, adotei uma curva de distribuição gama (que não aceita valores negativos) como distribuição conjugada para nossa hipótese atualizada.

Figure 2: Distribuição normal combinada com uma distribuição uniforme positiva, resultando na distribuição final. Esquema meramente ilustrativo.

Figure 2: Distribuição normal combinada com uma distribuição uniforme positiva, resultando na distribuição final. Esquema meramente ilustrativo.

Depois de uma porção mágica e deliciosa de álgebra TRIVIAL – céus, como eu queria dizer isso desde a época da graduação –, a distribuição final da expectativa de vida dos gatos ficou assim:

\[ \text{Idade máxima (fêmeas)}\sim\text{Normal}(\mu = 10, \sigma = 2) \]

\[ \text{Idade máxima (machos)} \sim \text{Gama}(\alpha = 1.3, \beta = 0.5) \]

O mapa da Dona Morte está traçado e por mais ridiculamente incertas que estas distribuições possam parecer (veja a figura abaixo), elas ainda são minha melhor opção para antever o próximo passo da Senhora-de-Branco. Elas não traduzem com precisão os fatos futuros, mas são suficientes para alimentar minha melancolia antecipada.

Figure 3: Expectativa de Vida dos Gatinhos. A curva cor-de-rosa representa as fêmeas, a curva azul-orkut representa os machos.

Figure 3: Expectativa de Vida dos Gatinhos. A curva cor-de-rosa representa as fêmeas, a curva azul-orkut representa os machos.

Da maneira como estas curvas estão representadas, elas não são de muita serventia para nosso propósito mórbido. Por isso, transformei-as em curvas cumulativas.

Tendo em mãos essas curvas cumulativas, fica fácil dizer qual a probabilidade de um indivíduo morrer em um futuro próximo dada sua idade. Você pode notar que morar no campo, para um gato macho, é receita certa de ir para o vinagre mais cedo. Contabilizando todos os dados discutidos, o gráfico abaixo mostra o que eu posso esperar para o ano que vem.

É curioso imaginar que o Cosmos conspira contra a saúde do gato pelo qual me sinto mais responsável. Sim, você adivinhou ao imaginar que “Zé Bostinha” foi obra minha. De acordo com os cálculos, há uma probabilidade de 75% dele encarar o único mal irremediável contra a probabilidade de 60% do Ubuntu (que não fica muito atrás). É tão possível que o Zé escape, assim como o Ubuntu, quanto jogar par-ou-ímpar com a Dona Morte e vencer duas vezes seguidas. É difícil, mas isto já aconteceu uma vez na história da humanidade.

Figure 4: Pode crer, caras!

Figure 4: Pode crer, caras!

Infelizmente, a probabilidade de nenhum deles morrer é de 10% apenas. Para barganhar por ambas as almas, agora eu teria que vencer no par-ou-ímpar três vezes consecutivas. Sempre existe aquela migalha de esperança, apesar do final feliz não ser impossível, mas pouco provável. Obviamente esta estatística não é um decreto, tampouco um mau agouro, mas uma ferramenta. Foi possível descobrir quais dos felinos deve precisar de mais cuidados nos próximos meses, lembrando-nos a manter os olhos abertos e permanecer alerta para quaisquer sintomas e comportamento fora do padrão.