Nébula Rasa

A inteligência e solidão de Karnal em dez voltas

Um amigo enviou-me outro dia um vídeo do Leandro Karnal em que ele discursa sobre inteligência e solidão na feira do livro em Porto Alegre. Mais precisamente, sobre como a inteligência conduz a uma vida mais solitária. Sempre gostei dos vídeos do Karnal. Citá-los é o tipo de coisa que me faz parecer mais inteligente em rodas de conversa. Logo, nada mais apropriado que um vídeo inteligente sobre inteligência para eu arrasar no meu círculo social. Dei play no mesmo instante.

O vídeo começa com Karnal argumentando, com sua voz caracteristicamente calma e pausada, que portadores de mentes excepcionais, como Clarice Lispector e Van Gogh, levam vidas miseráveis em reclusão.

— Porque pra conviver bem com as pessoas, precisa estar no mesmo plano civilizacional que elas. Por isso pessoas simples são tão sociáveis. — explica Karnal.

Pausei o vídeo. Acho que ele tem razão. Quero dizer, não conheço pessoalmente nenhuma mente excepcional para saber se isso é mesmo verdade. Mas talvez não as conheça precisamente por serem solitários. Despausei.

— À medida que vocês forem entrando na descoberta da literatura, vocês vão ficando mais exigentes com as pessoas.

Recaptulei, mentalmente, quais eram as pessoas que eu conhecia e que fossem leitoras assíduas. A lista não era extensa. Na verdade, podia-se contar com os dedos de uma mão. Nesse espaço amostral de uma mão, havia uma pessoa inteligente, uma idiota, e três que nunca fizeram ou disseram nada de memorável — nem pelo lado positivo, nem pelo negativo. Soltei o pause.

— Minha cabeça já deu dez voltas enquanto alguém me diz “tá quente hoje, né?” — desabafa o palestrante. — [Por conhecer umas tantas obras clássicas,] me sinto um pouco como um europeu, no meio da selva, preocupado em como ensinar as pessoas locais a passar seu terno de linho.

Pausei de novo, um pouco incrédulo, e voltei alguns segundos. É, Karnal disse isso mesmo. Ele não só acabara de sugerir que ele pertencia a uma ramifição melhorada do Homo sapiens, como também confudira erudição com inteligência. Uma se adquire lendo muitos livros, segundo a crença de Karnal. Já a outra, é uma característica congênita que pode ser até 80% explicada geneticamente.

Independente de qual inteligência Karnal estivesse se referindo, àqueles que não perceberam o pedantismo nas entre-linhas, sugiro um experimento. Imaginemos uma realidade alternativa onde Karnal, ao invés de um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade, fosse modelo profissional. Ele está, neste momento, palestrando numa feira de produtos de beleza. Todos anseiam por ouvir o segredo de sua formosura. Ele lista as marcas de cosméticos que ele já experimentou e, em seguida, enaltece sua própria cutis que foi ou geneticamente herdada, ou conseguida através de muito creme anti-rugas importado.

— É difícil, né. Quando você é lindo, você fica mais exigente em relação à beleza dos outros. — lamentaria a versão alternativa de Karnal.

Eu não duvido que indivíduos mais inteligentes tenham dificuldade em se socializarem. Não pela inteligência em si, mas por herdarem, dentro do mesmo pacote, outras características que dificultam a socialização. Sabe-se, por exemplo, que existe uma correlação significativa entre superdotação e autismo. A neurodivergência não impede que indivíduos tenham vidas perfeitamente normais, mas o esforço de uma pessoa neurodivergente para se socializar é bem maior do que de uma pessoa neurotípica.

E também acredito que mesmo pessoas com cérebros tipicamente normais, mas que tiveram a oportunidade de estudar em boas escolas e crescer em um ambiente conducivo à erudição, tenham assuntos que são alheios a pessoas que não tiveram acesso a nada disso. Se o único entretenimento disponível para alguém for a novela das oito, eu não terei assunto para conversar. E não tem nada a ver com inteligência; pode ser porque prefiro livros de ficção, ou porque assino Netflix.

A falta de assuntos em comum entre as pessoas é completamente natural, mas não é esse o problema. Alguém muito inteligente, mas que não teve acesso à cultura, não vai ter muito sobre o que conversar com alguém que frequentou o meio acadêmico. E o inverso também é verdade. Simples assim. É o ato de justificar a falta de assunto usando a carta “sou mais inteligente do que os outros” que me embrulha o estômago.

Fiquei imaginando qual seria a impressão de um sitiante sem escolaridade do interior em relação ao Karnal depois de alguns minutos de prosa. O filósofo não saberia dizer como enxertar uma laranjeira, tampouco qual a melhor época para cortar bambu. Mas enquanto dizia que sabia latim clássico, a cabeça do sitiante já teria dado dez voltas.

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