Nébula Rasa

Quanta evidência seria necessária para o Canadá proibir a maconha ao volante

Recentemente, um jornal curitibano publicou uma matéria sobre o aumento do número de de motoristas canadenses testados positivos para THC, a principal substância psicoativa da maconha, após a legalização no país. O estudo citado pelo jornal consta que em 2010 o número de motoristas testados positivos era de 0,18 a cada 1000 acidentados. Hoje, em 2023, esse número saltou para 1,01 a cada 1000 — um aumento de 473%. “O Canadá está colhendo o que plantou”, escreveu o colunista.

Porcentagens com três casas assustam mesmo. Porém, esse número sozinho não nos diz absolutamente nada. É mais ou menos equivalente a afirmar que água potável causa acidentes porque 99% dos motoristas acidentados no ano passado beberam pelo menos um copo antes de pegar o carro. Ao nos depararmos com valores isolados, é sempre útil nos perguntar: “isso é muito?” Pode parecer uma pergunta boba, mas muitas vezes a falta de um valor de referência para nos ancorar pode nos fazer acreditar cegamente na interpretação do autor, que nem sempre é justa ou honesta.

Dito isso, aproveitei o editorial tendencioso do jornal para exercitar um pouco os músculos estatísticos e calcular quantos motoristas canadenses fumados se acidentando seriam necessários para afirmarmos, categoricamente, que a maconha traz significativamente mais problemas nas estradas.

Estudos epidemiológicos vs. estudos de intervenção

Antes de falarmos sobre quantidade de evidências, precisamos primeiro esclarecer com qual tipo de evidência estamos trabalhando. Dentro da pesquisa, existem estudos observacionais e estudos de intervenção. Estudos epidemiológicos são aqueles em que o pesquisador não está agindo sobre os participantes do estudo, mas apenas observando as relações naturais entre os fatores e os resultados. Já os estudos de intervenção são aqueles onde os pesquisadores tentam eliminar o máximo de fatores interferentes possíveis através de experimentos controlados.

Para perguntas do tipo “será que a substância X causa o efeito Y?”, o ideal, na minha opinião, seria um estudo de intervenção. Isto é, recrutar uma massa de motoristas, administrar uma dose controlada de THC e medir seus reflexos enquanto dirigem do ponto A até B. Porém, mesmo este tipo de estudo tem suas desvantagens, pois ele elimina fatores secundários que poderiam contribuir para o efeito oposto do que se espera de uma hipótese. Exemplo: e se a maconha tem um efeito desestressante nos motoristas, fazendo com que dirijam mais tranquilamente e, assim, evitem acidentes?

Inferência bayesiana redux

Resolver questões como essa envolve um pouco de matemática. Minha ferramenta favorita para este tipo de problema é a fórmula de inferência bayesiana por ela ser simples, elegante e (relativamente) intuitiva de se trabalhar com probabilidades:

Observe que o jornal conclui que o THC impacta na habilidade dos motoristas considerando somente um componente da fórmula, \(P(E|H)\). Avaliar este número sozinho, não faz o menor sentido. Precisamos de uma base de comparação.

Estatisticamente significativo em relação a quê?

Para se avaliar o efeito de uma intervenção (como, por exemplo, a administração de maconha aos voluntários de um estudo), costuma-se utilizar uma medida chamada odds ratio (OR), definida como a razão entre a chance de um evento ocorrer em dois grupos diferentes. Os pesquisadores separam os voluntários em dois grupos e administra-se maconha para um dos grupos. Em seguida, pedem aos voluntários de ambos os grupos para que dirijam por um tempo determinado no simulador. Para se ter uma ideia de quanto a administração de maconha aumenta a probabilidade de acidentes, basta dividir o índice de acidentes do grupo que foi administrado maconha pelo índice de acidentes do grupo de controle:

\[ \text{OR} = \frac{P(A|M)}{P(A|\neg M)} \]

onde

Se \(\text{OR} = 1\), significa que não há nenhuma diferença entre os grupos. Quando \(\text{OR} > 1\), significa que um evento tem maiores chances de ocorrer no grupo de intervenção do que no grupo de controle.

Agora, precisamos de uma referência. Melhor dizendo, um “acordo” sobre quão grande deve ser o odds ratio entre dois grupos para digamos que a diferença seja estatisticamente significativa. Uma probabilidade duas vezes maior? Quatro? Este número é arbitrário e pode variar de legislação para legislação. Sugiro como ponto de partida a experiência que temos com o álcool. Ao ingerirmos duas doses de álcool em menos de uma hora, dobramos nossas chances de sofrer um acidente segundo esta notícia.

Definimos então que para uma substância ser considerada estatisticamente relevante para o aumento de acidentes de carros, ela deve aumentar os riscos de acidente em pelo menos duas vezes. Isto é,

\[ \frac{P(A|M)}{P(A|\neg M)} \ge 2 \]

Num artigo publicado em 2022 no JAMA Psychiatry, realizou-se um estudo de intervenção onde 191 pessoas foram recrutadas para consumir maconha ou placebo ad libitum e dirigirem num simulador. Segundo os autores do estudo, apesar dos participantes do primeiro grupo terem tido uma pontuação menor que os grupos de controle nos testes de agilidade, não houve diferença significativa em relação à quantidade de acidentes (uma razão entre 0,78 e 1,57 — isto é, menor que 2).

Além dos simuladores

Suponhamos que os pesquisadores do artigo acima tivessem observado um aumento muito maior de acidentes no grupo de intervenção com maconha de tal forma que o odds ratio fosse exatamente 2. Se a maconha dobra as chances de um motorista se acidentar, qual a porcentagem de motoristas acidentados sob efeito da maconha, \(P(M|A)\), deveríamos encontrar nas estradas do Canadá? Expandindo a razão anterior, temos:

\[ \frac{P(M|A)P(A)}{P(M)} \times \frac{P(\neg M)}{P(\neg M|A) P(A)} \ge 2 \]

\[ \frac{P(M|A)P(A)}{P(M)} \times \frac{1 - P(M)}{[1 - P(M|A)] P(A)} \ge 2 \]

Isolando \(P(M|A)\) na expressão acima, chegamos a

\[ P(M|A) \ge 2 \times \frac{P(M)}{1+P(M)} \]

Felizmente, a literatura nos fornece o valor de \(P(M)\), isto é, a probabilidade de encontrarmos motoristas que consumiram maconha em todo nosso espaço amostral. Em 2019, o Governo do Canadá publicou um relatório mostrando que, numa amostragem aleatória de motoristas nas estradas que aceitaram participar da pesquisa, 7,6% dos motoristas testaram positivo para THC. De posse desse número, temos que:

\[ P(M|A) \ge 2 \times \frac{0.076}{1+0.076} \]

\[ P(M|A) \ge 0.141 \]

Isso quer dizer que se a maconha dobrasse as chances de um motorista se acidentar, deveríamos observar pelo menos 14,1% dos motoristas acidentados testando positivo para THC. No entanto, segundo o estudo do jornal curitibano, esse número é de apenas 0,1%. Ou seja, deveríamos observar um índice 140 vezes maior de motoristas canadenses intoxicados se envolvendo em acidentes para poder dizer: “Ei, esta substância aumenta em duas vezes as chances de um motorista se envolver num acidente — o equivalente a duas doses de álcool. Talvez devêssemos regulá-la”.

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