Nébula Rasa

Discussões políticas e o instinto ancestral

Figure 1: Jacques Raymond Brascassat - A Bull Fight (1855)

Figure 1: Jacques Raymond Brascassat - A Bull Fight (1855)

Este é o primeiro capítulo de uma série de ensaios onde tentarei fazer algum sentido do caos que as relações pessoais se tornaram por causa da política, ao mesmo tempo que abordo peculiaridades da mente humana pelas lentes da psicologia evolutiva — e, quem sabe assim, convencê-lo como eu me convenci de que, exceto sob condições especiais, discutir política com a maioria das pessoas é inútil. Ao final, espero que você se torne mais tolerante quando (se) discutir sobre política novamente e, na melhor das hipóteses, que você perdoe os parentes chatos no grupo do Whatsapp.

Para lhe poupar do transtorno de chegar ao final de uma leitura de 26 minutos e descobrir que você estava com uma ideia totalmente errada do que este texto se tratava, gostaria de deixar claro o que você não encontrará aqui:

Introdução

Meu primeiro voto foi aos 16 anos. Como todo bom adolescente revoltado com o sistema, tirei o meu título de eleitor na mesma semana em que fiz aniversário. Meu plano era fazer a diferença no mundo através do processo democrático, assim como todos os outros adolescentes, que também queriam fazer a diferença no mundo através do processo democrático. Eu tinha aquela convicção apaixonada, mas não muitos recursos — nem muitas ideias — então minha principal arma era angariar aliados pelo grito mesmo. Quanto mais gente eu conseguisse convencer, mais diferença eu estaria fazendo.

Isso foi há duas décadas. Numa retrospectiva, sou levado a crer que não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Quero dizer, quando se tem quase 40 anos e um pouco mais de juízo depois de muitos trancos e barrancos, olhar pra trás lhe faz perguntar, “como diabos consegui sair ileso da adolescência?” Em primeiro lugar, hoje sei que sistemas são complexos e para que uma diferença significativa seja sentida pela sociedade, são necessários anos e anos de pequenas mudancinhas aqui e ali, votadas às vezes ao longo de vários governos. Também sei o que não se deve fazer para convencer alguém a votar igual a você: “dar opiniões não solicitadas” encabeça a lista, logo antes de “desrespeitar quem discorda da sua opinião não solicitada, invocando ignorância alheia, medo ou perversidade, ou tudo isso ao mesmo tempo”. Só tem um problema. Apesar de adulto e perfeitamente consciente disso tudo, eu e todos os outros adultos que conheço continuamos a travar chifres em embates sobre política com a mesma paixão de adolescentes que pensam estar fazendo a diferença no mundo através do processo democrático.

Os debates incendiados tem se alastrado pelo país nos últimos anos como fogo de palha. Há duas décadas, era ridícula a ideia de desfazer amizades e cortar relações com a família por conta de política e, de repente, quem nunca passou por isso hoje se sente até meio deslocado. Você não é brasileiro se nunca brigou num almoço de domingo por causa de política. Não que as discussões políticas antigamente fossem rituais cordiais do mais puro racionalismo; mas hoje, vê-se adultos se engalfinhando em brigas dignas do final do Brasileirão.

Eu mesmo tive inúmeras oportunidades de discutir política racionalmente nos últimos tempos, mas falhei em boa parte delas. Falhei a ponto de gritar e xingar colegas de trabalho, ou tretar com pessoas no Facebook que nunca vi na vida. “A verdade é óbvia”, eu dizia. Qualquer ser minimamente inteligente não apoiaria esse fingido desse candidato aí. É óbvio que ele está mentindo descaradamente — ele e todo aquele partido nefasto dele. Quem concorda com uma só palavra dessa corja só pode ser muito mal intencionado. Nós somos a última esperança do país; eles são o mal que devemos combater a todo custo; e devemos combater não com palavras, mas indo para as ruas! Ou talvez, no mínimo, compartilhando absolutamente todas as notícias que atacam o candidato adversário nas redes sociais! Isso vai certamente ensinar uma lição aos seus eleitores. Mas primeiro, deixe-me colocar esse adesivo na minha foto de perfil para deixar bem claro em qual time eu estou.

Isso soou familiar?

Esse discurso elaborado mas vazio, que tem sido a forma preponderante de se expressar politicamente nos últimos tempos, merece uma análise. Primeiro, ele emerge de ambos os lados do espectro ideológico, os quais não suspeitam da eficácia do discurso contra si próprios. Tenho certeza que alguns leitores intuíram que, no parágrafo anterior, eu deveria estar me referindo a um político e ninguém mais. Como diz o ditado, “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho?” O discurso é um discurso coringa justamente porque carece de qualquer objetividade. Note que nele não há um argumento factual sequer; apenas acusações vagas carregadas de emoções, mas nenhum fato, nenhum número. Onde não há esse tipo de palavreado, há chavões prontos e memes, que são formas diferentes de inflamar sem informar.

Figure 2: Acusações coringas são usadas pela esquerda e direita de países e contextos diferentes.

Figure 2: Acusações coringas são usadas pela esquerda e direita de países e contextos diferentes.

Em segundo lugar, existe uma preocupação constante em se demonstrar posições políticas tanto para os correligionários quanto para os adversários. Com isso em mente, fabricantes de bótons, camisetas, bonés e adesivos para carros com slogans políticos nunca tiveram tanto lucro. Nas redes sociais, virtualmente todos estamparam suas fotos de perfil com algo que simbolizasse sua preferência política. Quem não se posicionou publicamente durante as eleições passadas certamente foi devido a razões de força muito maior, como estar abandonado em uma ilha deserta — embora eu tenha certeza que mesmo essa pessoa deve ter se sentido tentada a dialogar com um coco verde ou uma bola de vôlei, sobre a patifaria do candidato que ele desgosta.

Mas nem toda discussão em torno da política se fundamenta em gritaria. Na verdade, tendo em mente que as pessoas costumam entrar em combustão espontânea quando me refiro a seus partidos favoritos, eu tento me policiar ao máximo para ser tolerante e racional antes de entrar em certos embates, buscando levar para dentro deles apenas estudos e dados objetivos. As pessoas podem ter visões subjetivas sobre assuntos controversos como aborto ou legalização das drogas, mas comparar dois números e dizer qual é maior não é uma questão de ponto de vista.

E então a mágica acontece: nada. Não importa quão inteligentes sejam meus interlocutores, eles não arredam com sua opinião nem diante de fatos concretos. Alguns se contorcem à la Cirque du Soleil para tentar me mostrar como a realidade é relativa, e os fatos que citei não são o que parecem ser. Era como se essas pessoas não estivessem mais operando no plano da lógica; foram acometidas por algum vírus não-euclideano ou algo do tipo.

Isso me faz pensar se já não fiz o mesmo. Será que alguém já tentou me mostrar a luz e eu me recusei a vê-la durante um acesso de loucura? Afinal, o louco jamais é louco na sua própria história. Eliezer Yudkowsky acredita que esse fenômeno não seja fruto de demência, mas de nosso passado. Ele escreveu:

“As pessoas ficam abobalhadas quando discutem política. As razões evolutivas são óbvias: no ambiente ancestral, política era uma questão de vida ou morte. E sexo, e riquezas, e aliados, e reputação […] Quando, hoje, você entra em uma discussão [do tipo ”nós contra eles”], você está executando adaptações para um ambiente ancestral onde estar do lado errado poderia ser seu fim […] Política é uma extensão da guerra de certa forma. Argumentos são soldados. Uma vez que você optou por um lado, deve proteger todos os argumentos desse lado; caso contrário, é como apunhalar seus soldados pelas costas, provendo ajuda e conforto ao inimigo.”

Seria essa a razão, afinal, de ser tão difícil discutir pautas que deveriam ser abordadas de forma tão racional? De onde vem esse sentimento de “nós contra eles”? Por que não percebemos quando estamos agindo assim? Poderemos, algum dia, reverter esse quadro?

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