Nébula Rasa

Razões para não eleger Bolsonaro

Depois de quase um ano brigando por política, eu havia decidido parar de me manifestar. Em parte, porque achamos que nossas escolhas são inteiramente racionais, enquanto, na verdade, têm origens tanto emocionais quanto fisiológicas. Isso significa que dificilmente mudaremos de opinião, mesmo diante de uma montanha de argumentos lógicos. A outra razão é que quando argumentamos política em público, normalmente é porque queremos mostrar que estamos certos, e não aprender coisas novas.

Mas estamos muito próximos de um desfecho político bastante exótico, então decidi fazer um último apelo.

Eu sei perfeitamente bem que o artigo num blog mundano como esse não vai mudar suas convicções, então resolvi adaptar a linha de raciocínio de Scott Alexander (Slate Star Codex) sobre a disputa entre Hillary e Trump para a nossa realidade tupiniquim. Primeiramente, porque Scott Alexander tem uma retórica invejável. E também, porque os cenários dos Estados Unidos em 2016 e do Brasil atual são bastante parecidos, então talvez possamos aprender algumas coisas, e entender o porquê de não votar no Bolsonaro, mesmo que se concorde com todas as suas ideias.


I

A direita tem razão em algumas de suas críticas sobre a esquerda. Muitos de nós sonham com um mundo mágico alcançado por meios igualmente mágicos. Uma sociedade perfeita, livre do grilhões do capital, criada sem apoio de aliados e sem efeitos colaterais — apenas atitudes inclusivas e frases lacradoras. Independente de uma proposta de um mundo melhor por filósofos, políticos ou testemunhas de Jeová, promessas extraordinárias podem ser possíveis, mas são uma fantasia perigosa quando não vêm acompanhadas de um blue print muito bem detalhado de como chegar lá.

Estamos no segundo turno das eleições presidenciais. Bolsonaro possui propostas que ainda são extremamente vagas. Tão vagas que sua equipe não viu problema nenhum em publicá-las no formato de uma apresentação amadora de Powerpoint. A mensagem dos slides é: lutar contra tudo que está aí.

Enquanto isso, Haddad está atolado até o pescoço de medidas políticas convencionais e previsíveis. Seu plano de governo é mais do mesmo. Um ajuste fiscal aqui, um novo acordo comercial ali, promessas de redução de impostos acolá. Os críticos do Haddad estão certos: ele jamais conseguirá alavancar o Brasil como faz parecer nas suas propagandas. Mas diferente de Bolsonaro, Haddad tem um plano de governo.

Se você não consegue enxergar como Bolsonaro se assemelha mais aos marxistas que sonham com a utopia perfeita ao invés da direita conservadora que ele diz representar, faça o seguinte exercício: pegue seu discurso e substitua “esquerdistas” por “burguesia”; substitua o pressuposto de que tudo se acertará sozinho uma vez que o poder estiver nas mãos da “família tradicional brasileira”, pelo pressuposto que tudo se acertará sozinho quando o poder estiver nas mãos da classe operária; substitua as mãos vazias e sem planos detalhados sobre o que fazer depois das eleições, com as mãos vazias e sem planos detalhados sobre o que fazer depois da grande revolução; substitua “a solução é privatizar tudo” por “a solução é estatizar tudo”.

II

Alguns dizem que devemos interpretar Bolsonaro literalmente, mas não levá-lo a sério. Outros dizem para o levarmos a sério, mas não interpretá-lo literalmente. Eu sou do segundo grupo. Não acho que ele discursa literalmente. Eu aposto que quando ele diz que prenderá ou expulsará os comunistas do país, ele está dizendo “eu vou defender vocês, família tradicional brasileira”. Quando ele fala sobre reforma tributária ou trabalhista e melhorar a vida do cidadão, ele está dizendo “eu vou defender vocês, família tradicional brasileira”. A questão é que nada disso soa como um plano de verdade.

Bolsonaro tanto não tem soluções concretas para o problema, como ele nem ao mesmo compreende o problema. Ele vive em um mundo onde não existe essa coisa de inteligência ou competência para liderar um ministério. Apenas a lealdade importa. Se nós não resolvemos problemas do Brasil ainda, foi porque o Ministério da Resolução de Problemas só emprega funcionários corruptos e com más intenções. A solução do Bolsonaro é preencher este ministério com pessoas partidárias a ele. Ponto final.

A esquerda costuma cometer esse mesmo erro ao acreditar que a única razão da pobreza ainda existir é porque o governo quer, e que é incrivelmente fácil criar dinheiro do nada e convencer a oposição a gastá-lo em programas sociais. Mas nessas eleições, Haddad é quem tem soado mais comedido com as promessas de campanha e Bolsonaro é quem promete salvar o mundo tirando coelhos da cartola.

III

Eu acho que mesmo aqueles que acreditam que o Bolsonaro seja o melhor candidato em média, admitem que ele possui enorme variância. Haddad é uma quantidade extremamente bem conhecida até aqui. Uma presidência do Haddad seria provavelmente parecida com uma presidência Lula 2 ou Dilma 1. Poderia haver acordos comerciais com países latino-americanos que a direita desgosta, mas não a ponto dos presidentes se tornarem melhores amigos, unificarem suas moedas, e saírem de mãos dadas por aí. Se algo terrível acontecesse, como uma guerra envolvendo aliados, Haddad provavelmente tomaria alguma decisão óbvia após consultar seus assessores. Ele poderia fazer um trabalho bem ruim na verdade, mas é difícil imaginar um futuro onde a presidência do Haddad nos levasse diretamente para o apocalipse, para o fim da democracia no Brasil ou coisa parecida.

Bolsonaro não é uma quantidade conhecida. Talvez ele fique fazendo arminhas com as mãos por aí ou mitando no Twitter enquanto nada muda significativamente no país. Ou talvez haverá uma crise e Bolsonaro assumirá o que poderia ser um pequeno incidente facilmente resolvível pelos meios democráticos e transformá-lo, com a ajuda de seus assessores visivelmente insanos, numa nova Turquia de Erdogan ou Filipinas de Duterte. Lembre-se também que após o primeiro turno dessas eleições, é mais provável que o Congresso e o Senado favoreçam decisões de direita do que de esquerda. Portanto se Haddad for eleito, ele provavelmente passará quatro anos batendo cabeça com congressistas, conseguindo aprovar menos propostas do que gostaria; se Bolsonaro for eleito, ele provavelmente conseguirá tudo o que lhe der na telha. Poder absoluto.

Algumas pessoas gostam de grandes variâncias. Eu não. O Brasil tem testemunhado um grande alívio da pobreza ao longo das últimas décadas, independente dos presidentes serem de direita ou esquerda. E a tendência mostra sinais de continuar assim, contanto que não façamos nada incrivelmente estúpido daqui pra frente. E eu não vejo uma presidência do Haddad deixando o país menos funcional, o que quer que isto signifique. Por outro lado, eu não sei o que esperar da presidência do Bolsonaro, porque ele é imprevisível. Mas “um grande abalo na ordem das coisas” está definitivamente na lista de possibilidades.

IV

Quando peço aos eleitores do Bolsonaro para que me digam qual é o problema do Brasil, não é sobre a crise trabalhista ou reforma da previdência que normalmente ouço. É sobre um grupo chato e intelectualmente arrogante que tomam suas opiniões como verdades absolutas, sem paciência de debater com pessoas do povo que não concordam com elas. E Bolsonaro promete ser tanto diferente dessas pessoas quanto ele, na verdade, as repulsa – o que o torna uma opção incrivelmente atraente.

Isto é definitivamente verdade. Por favor, vote no Haddad mesmo assim.

Além do fato de que se vingar de pessoas irritantes não justifica erodir as fundações da nossa sociedade civil, você realmente acredita que eleger Bolsonaro irá atingir esses justiceiros sociais? Você acha que isto fará com que questionem suas opiniões? “Oh, metade dos brasileiros discorda de mim, acho melhor eu refletir um pouco”. Claro que não. A eleição de Bolsonaro apenas confirmará para eles aquilo que eles já acreditam – que o brasileiro médio é estúpido e racista e que precisa ficar o mais longe possível da vida pública. Se Bolsonaro for eleito, claro, as páginas editoriais uivarão de desespero no dia seguinte, mas de baixo dos uivos haverá uma silenciosa satisfação de que o mundo é exatamente como eles acreditavam ser.

A direita algumas vezes diz que a esquerda é como um religioso fanático que acredita estar em busca de uma figura heróica salvadora da nação. Então, a mesma direita chega e diz: “sabe o que colocaria esses esquerdistas em seus devidos lugares? Uma forte figura heróica que os persiga. Isso definitivamente os fariam sumir. Não tem como dar errado”.

O governo é uma das áreas que os socialistas menos controlam efetivamente – ainda mais agora, quando tanto o Congresso quanto o Senado, assim como a maioria dos governadores estaduais, são de direita. Quando alguns dizem que a esquerda está no controle, eles estão se referindo às universidades, à mídia, às artes e à cultura no geral. Mas todas essas coisas tem uma tendência natural de se colocarem como oposição. Quando a esquerda controla o governo, as coisas se tornam complicadas e tendem a envolver bastante briga interna no Congresso e Senado. Quando a direita controla o governo, as coisas ficam fáceis. Se Bolsonaro controlar o governo, as coisas ficarão ridiculamente fáceis. Será um Poder Executivo sem freios. Isso tem consequências perigosas no mundo real.

V

Todos de certa forma já construíram a narrativa: Bolsonaro é o candidato anti-justiceiros-sociais. Se ele vencer, ele será o presidente anti-justiça-social. Mas ele vai falhar como presidente. Primeiro, porque ele não mostra muitos sinais de que ele saiba o que está fazendo. Segundo, porque todos os presidentes falham de certa forma – dificilmente um presidente termina seu mandato no Brasil com índice de aprovação positivo. Terceiro, porque se por algum milagre Bolsonaro evitar esses dois modos de falha, a mídia vai dizer que ele falhou de qualquer jeito e as pessoas vão acreditar. E quando o presidente anti-justiça-social e anti-politicamente-correto falha, a reação será um ressonante “eu te disse” do movimento dos justiceiros sociais e uma gigantesca transição dos jovens desiludidos para a ala da esquerda.

Então, se você não gosta de justiceiros sociais, entenda que Bolsonaro está prestes a se tornar o maior presente que a história poderia dar ao movimento da justiça social.

E depois, você acha que dar vida ao inimigo mortal dos justiceiros sociais irá de alguma forma resolver o problema? Se você é um judeu lutando contra o anti-semitismo, o mínimo que você deveria fazer é não assassinar bebês cristãos e beber seu sangue num bar mitzvá. Da mesma forma, se você é um conservador de direita que quer lutar contra o movimento de justiceiros sociais que rebaixam qualquer um que discorde deles a meros “ignorantes que são coniventes com o discurso de ódio”, o mínimo que você pode fazer é não ser um ignorante que é conivente com o discurso de ódio.

VI

Seu inimigo não é a esquerda ou os justiceiros sociais, mas a falta de pensamento crítico. O plano de longo prazo de um país que deseja fazer escolhas melhores nas eleições tem que combinar uma medida a curto prazo de neutralizar candidatos tiranos com uma ação a longo prazo de encorajar o pensamento crítico para que não tenhamos de ficar apagando pequenos incêndios. Alguém poderia honestamente dizer que Bolsonaro promove o pensamento crítico? Que no longo prazo, ficaremos felizes de termos encorajado esse tipo de coisa, de termos dado recursos, atenção e todos os nutrientes para que esse mundo floresça? Que a estrada para a visão que temos de uma sociedade justa e racional, um lugar pacato e austero com árvores frondosas e colunas gregas, corre por entre “Pinochet devia ter matado mais gente”?