Nébula Rasa

O Manifesto do Partido Comunista

Título:
Manifesto do Partido Comunista
Autor:
Karl Marx
Ano:
July 26, 2012
ISBN:
9788563560360
Idioma:
por
Nota:
3/5

Ser de esquerda e nunca ter lido Marx sempre foi pra mim um motivo de vergonha. Então resolvi remediar isso na vida adulta. Antes tarde do que nunca.

Você pode achar irônico eu resenhar sobre o Manifesto do Partido Comunista justamente no ponto da minha vida onde mais tenho capital guardado e mais consumo feito um burguês safado. Porém, esse era um equívoco que eu mesmo cometia. Dinheiro não é o grande problema do mundo sob a ótica de Marx. O grande problema, segundo ele, é a exploração de uma classe privilegiada por outra. Mais especificamente, a escravização do proletariado (aqueles que vendem sua mão-de-obra) pela burguesia (aqueles que detém os meios de produção). De posse dos meios de produção e de uma imensurável propriedade privada, eles têm o poder para esterçar o governo, a justiça, a polícia, a mídia, a opinião pública e o que mais for necessário para manter o status quo. Com essa capacidade de encantar, distrair e conduzir a sociedade, fazem-nos crer que sem o capitalismo mergulharíamos em puro caos; criam a narrativa de que o sistema vigente, onde o proletariado é necessariamente explorado para conceder ao burguês uma margem de lucro, é a melhor coisa que poderia nos ter acontecido. Como escreveu Yuval Harari em Sapiens:

Como você faz as pessoas acreditarem em uma ordem imaginada como o cristianismo, a democracia ou o capitalismo? Primeiro, você nunca admite que a ordem é imaginada. Você sempre insiste que a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza. As pessoas são diferentes não porque Hamurabi disse isso, mas porque Enlil e Marduk decretaram isso. As pessoas são iguais não porque Thomas Jefferson disse isso, mas porque Deus as criou dessa maneira. Os livres mercados são o melhor sistema econômico não porque Adam Smith disse isso, mas porque essas são as leis imutáveis da natureza.

Apesar do neoliberalismo, do livre mercado e das “freedom fries”, a verdade é que o homem nunca foi tão prisioneiro de um sistema econômico e tão alienado do seu próprio meio. Estamos falando da Europa de 1870, década quando o Manifesto foi escrito. Mesmo assim, acredito que Marx jamais teria imaginado que sua obra ainda seria tão relevante no século XXI, onde o artista que poderia ser o novo Rembrandt está fazendo Uber por mais de 10 horas por dia, num regime de semi-escravidão, apenas para ter o suficiente para pagar por um teto e comida; ou para o doutorando que poderia contribuir para a cura do cancer, mas é forçado a ter dois empregos porque sua bolsa miserável de pesquisa não sustenta uma família.

O lado bom de tudo isso é que Marx vê o fim do capitalismo como algo inevitável. O capitalismo, para existir, depende tanto de um crescimento constante de capital quanto de malabarismo retórico para poder continuar existindo. Mas tudo tem limites — os recursos do planeta são finitos, assim como a tolerância de uma classe oprimida por tanto tempo diante de abusos e injustiças sociais. Marx espera que o capitalismo cresça a tal ponto que exploda feito uma espinha.

Alguns países conseguiram se distanciar o bastante do capitalismo liberal típico para que se livrassem temporariamente desses miasmas. Isso sem ao menos precisa expurgar a classe burguesa e implantar um governo verdadeiramente comunista. É o caso dos países escandinavos, que implantaram políticas de bem-estar social através de um Estado forte e altos impostos. Para Marx, isso era previsível — o comunismo sendo inevitável, é de se esperar que a burguesia tente construir um novo mundo com condições um pouco melhores para o proletariado, mas onde os burgueses possam continuar existindo. A questão é que enquanto a burguesia existir nesses países, o problema só estará sendo adiado. As dinâmicas de poder continuam as mesmas. A desigualdade econômica permanece, ainda que em menor grau. Mas a burguesia é paciente e pode aguardar bastante tempo enquanto ganha momento de inércia para, num estalar de dedos, direitos trabalhistas sejam tirados e o seu capital possa ser multiplicado em ritmos nunca vistos.


Depois de terminar a leitura, não pude deixar de pensar que talvez a verdadeira raiz do problema não seja a existência da burguesia. A exploração de um grupo por outro já existia bem antes da burguesia emergir. O próprio Marx admite:

[…] a burguesia trocou a exploração envolta em ilusões religiosas e políticas pela exploração pura e simples, aberta, desavergonhada e direta.

No fim, o ser humano é o denominador comum em todo sistema onde há exploração de classes, do absolutismo ao neoliberalismo. O que me remete a um grande “porém” na obra de Marx. Ele não detalha, por exemplo, como devemos arrancar a elite exploradora do poder para que ali ela nunca mais rebrote. Ele apenas defende que a burguesia deve deixar de existir se quisermos uma sociedade justa e que qualquer estratégia que não envolva a luta de classes estará fadada ao fracasso. Mas e depois? Uma vez que o proletariado tomar os meios de produção e ser seu próprio governo, o que impede que um novo grupo ascenda entre o proletariado e imponha à força uma nova classe dominante e uma subjugada, apenas sob um novo verniz? Marx dá algumas sugestões de como evitar isso. Ele diz que uma mudança de paradigma deve vir acompanhada dessa revolução e que, para haver uma mudança real, deve-se abolir por completo a propriedade privada:

Os proletários só podem conquistar para si as forças produtivas da sociedade na medida em que puserem fim a seu modo peculiar de apropriação e, com isso, todo e qualquer modo de apropriação existente. Eles não têm o que assegurar para si; cabe-lhes destruir toda segurança e toda garantia à propriedade privada.

Isso quer dizer que Marx pregava o fim das posses pessoais? Que tudo que é meu é seu? Não exatamente. Segundo estudiosos de Marx, ele se referia à propriedade burguesa, os meios de produção, tudo aquilo que gera lucro, como por exemplo:

Isso me lembra as eleições brasileiras, quando tios donos de chácaras, se achando grande latifundiários, temem que o Estado tome suas terras através da reforma agrária. Da mesma forma, não creio que Marx tenha sequer cogitado a ideia de uma multidão enfurecida, armadas com paus, pedras e justificativa moral, se apropriando da sua casa de dois quartos, seu carro motor 1.0 ou seu trailer de hot dogs. A posse comunitária é possível. Comunidades primitivas funcionaram assim por dezenas de milênios. Apesar da clara hierarquia em tais comunidades, não havia extorsão ou exploração de um grupo por outro (a menos que estejamos falando de comunidades inimigas sendo escravizadas).

De qualquer forma, consigo enxergar o quanto essa ideia de abolir a propriedade privada pode parecer assustadora, mesmo que ela se limite aos meios de produção. O limite entre o que é e o que não é um meio de produção é completamente arbitrário. Nem ao mesmo Marx arriscou esboçar esse tema a fundo no seu Manifesto — e sabe-se lá quem são as pessoas que vão decidir o conceito de “meio de produção” quando a grande revolução acontecer.


Embora o Manifesto não forneça muitos detalhes de como construir a sociedade do futuro digna de uma ilustração de livro espírita, ele foi um bálsamo para a humanidade que se debatia por ar fresco no contexto semi-escravagista da Europa recém-industrializada. Uma obra absolutamente necessária para a época, onde até então pouco se falava em desigualdade social e sua atual causa. Pelo menos não de forma coesa, mas através de uma ideologia fraca e intangível originária de filósofos cristãos, como Santo Agostinho. E a obra de Marx continua relevante, especialmente agora que estamos transitando para o capitalismo tardio — a era da economia da atenção, dos panopticons digitais e do Only Fans.

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