Nébula Rasa

Um pouco é melhor do que nada

Comecei a fazer sessões de psicoterapia em 2016 e foi uma das decisões das quais mais me orgulho até hoje. Havia resolvido buscar ajuda para tratar de ansiedade crônica, fobia social, síndrome do impostor, problemas com autoimagem e, sobretudo, uma sensação incômoda de que eu era refém das minhas emoções e pensamentos. (É um estranho sentimento de como se eu estivesse vivendo no piloto automático). Tudo isso mais uma cobertura de compulsão por doces.

Apesar destes incômodos mais salientes, um dos assuntos que abriram nossa série de dois anos de tratamento psicológico foi minha tendência em abandonar coisas pela metade.

Como exemplo, contei a ela sobre meu blog de ciência que eu mantive durante os meus anos de faculdade, o “Nebulosa Nerd’s Bar”. Eu adorava escrever, e tive o hábito de publicar um post por semana até ter 1000 pessoas inscritas na minha newsletter. De repente, começou a parecer mais um dever do que um hobby, e parei de escrever completamente. Foi um bloqueio total. Como em todos os projetos pessoais que já tive, deixei de me importar antes de colher os benefícios de longo prazo.

Alguns meses de terapia depois, minha psicóloga me recomendou a meditação.


Com a chegada dos 30, comecei a me questionar sobre coisas que nunca antes havia questionado. O sentido disso tudo. Sobre nosso comportamento diante de dilemas morais. Até onde é errado mentir para um bem maior. Se devo ter um emprego que dê retorno à humanidade e pague pouco, ou se arrumo um emprego não tão digno mas que pague bem para doar parte do dinheiro à caridade. Sobre nossas escolhas como adultos. Nosso lugar no Cosmos.

Para a maioria das questões, não encontrei respostas. Talvez nunca encontre. Mas pude ter algum consolo na Filosofia. Epiteto, Epicuro, Platão, Nietzsche e Heidegger tinham algumas peças do quebra-cabeças. Também encontrei peças em formatos engraçados e interessantes na doutrina budista Dzogchen, mais particularmente num livro chamado Zen Enrolado em Karma com Cobertura de Chocolate. Adivinha o que o autor me recomendava?

“O melhor jeito de viver a vida é viver do jeito que você quiser. Mas viver a vida que você quer não é o mesmo que viver a vida que você pensa que quer. […] antes de você querer viver a vida que você realmente quer viver, você precisa descobrir realmente o que você quer. Isso exige paciência. Você precisa olhar para o interior da sua própria mente e separar os desejos reais dos irreais que você criou a partir de pensamentos falhos. Eu só conheço um jeito de fazer isso, e você já deve ter descoberto o que é a essa altura. Pois é. Você sacou. Um monte de meditação.”


Ao mesmo tempo que a idade adulta me causou dilemas morais, fui acometido também por outros problemas de saúde: disfunções hormonais, glicemia elevada, dores nas articulações e, o pior de todos os problemas, incapacidade de me concentrar como antigamente.

“Problema de junta” se resolve com muito gelo e academia. Glicemia, uns comprimidos de Glifage 500 mg XR após as refeições. Já quanto à falta de concentração, não existe remédio alopático. (Na verdade, existe e se chama Modafinil. Pode procurar, mas você não vai encontrá-lo à venda no Brasil. Outro remédio mais barato e acessível, dizem os especialistas, se chama Largaocelularzol, que dói mais que injeção).

Contudo, adivinhe o que os neurocientistas e a Fátima Bernardes recomendam para a falta de atenção? Sim, a meditação, também vendida no ocidente como mindfulness ou atenção plena.


Enfim, não faltam evidências anedóticas nem acadêmicas para me convencer de que a meditação é uma psico-tecnologia que dá resultados.

Mas sempre fui cético quanto à prática. Para começar, li que existem várias maneiras diferentes de meditar. Qual escolher? Todos promovem os mesmos benefícios? Afinal, quais são os benefícios? Por que estou pesquisando sobre isso, afinal?

Seguindo a sugestão da comunidade racionalista em Less Wrong, decidi seguir os passos descritos em The Mind Illuminated : Um guia completo de meditação que integra a sabedoria budista e a ciência do cérebro, de autoria do neurocientista John Yates.

Hoje faz quase dois anos que sento para meditar toda manhã depois do meu café com fibras e baixo índice glicêmico. Também faz dois anos que não consigo manter o hábito por mais de três manhãs seguidas.

Mas, como dizem, “um pouco é melhor do que nada”.

Quem me disse essa frase foi o instrutor de mindfulness patrocinado pela empresa onde trabalho. Você sabe, para acalmar funcionários ansiosos. Do tipo eu.

Devo confessar que comecei frequentando essa série de palestras com muito niilismo no coração. Não achei que eu pudesse ouvir uma palavra que prestasse em uma palestra cujo objetivo fosse, supostamente, não dizer nada.

No final das contas, dei o braço a torcer. O curso foi muito bom e a aula não se resumiu a 60 minutos de silêncio. Na verdade, discutia-se de tudo um pouco. “Um pouco é melhor do que nada”.

Essa expressão me fez persistir em meditar quando eu não tinha mais do que 5 minutos de folga antes de sair de casa. Bastaria meditar pouco porque, afinal, não existe um placar. E num desses poucos, tive um insight: no livro de Culadasa, é dito que a meditação é um fim em si mesmo. Não existe objetivo, existe o processo. Ou melhor, o processo é o objetivo. Se você persegue o objetivo, ele se afasta de você. E se escrever funciona da mesma forma? E se escrever for uma espécie de meditação?

A escrita, ou melhor, a dinâmica de escrever tem um potencial comprovadamente terapêutico. Se uma atividade for prazerosa e não for nem muito fácil nem muito difícil, é possível adentrar-se em uma espécie de transe o qual os psicólogos chamam de estado de fluxo. Artesãos sentem isso. Músicos sentem isso. Programadores sentem isso (exceto vocês, programadores de VisualBasic, sinto muito).

Eu sentia esse fluxo quando escrevia antes. A escrita se transformou em fardo porque criei expectativas irreais: eu deveria me divertir escrevendo como antes; as pessoas que liam o que eu escrevia, em contrapartida, deveriam se divertir também; meus velhos amigos da faculdade deveriam estar comigo nesse projeto.

A mais dura das realidades é que não existe, em qualquer lugar do Universo, uma tábula mágica dizendo que qualquer coisa tenha deveres. Nada garante que eu deva me divertir exatamente como no passado. Nada garante que os meus leitores todos apreciem o que eu escrevo. Nada garante que voltar no tempo seja possível.

Criar metas no plano das coisas que estão fora do seu controle e sofrer por não atingi-las é ilógico. Eu me coloquei em um grande anel de Möbius, um labirinto mental não-euclideano que não dava ao menos sinais de que eu estava caminhando em direção à linha de chegada. A partir do momento em que eu me distraí com objetivos ilusórios às custas de relaxar e curtir o passeio, manter um blog (ou as tirinhas) virou um pequeno inferno pessoal.

E se eu pudesse escrever novamente só pelo prazer de escrever? Só para aliviar a pressão intracraniana de tempos em tempos; para expurgar os dilemas morais que vão se empilhando?

Se pude aprender alguma coisa com minha psicóloga é que devemos – ou melhor, é preferível – optar por estratégias que nos torne indivíduos mais funcionais. Funcionais para o que quer que sua função de utilidade valorize mais. Se “apreciar a viagem ao invés do destino” é algo que está sob meu controle, e se isso me ajudaria de alguma forma a criar bem-estar, então por que não?

Eis a minha razão em recomeçar um blog. Além de servir como ferramenta para organizar e compartilhar ideias (um fim), quando escrevo, entro em um estado de fluxo onde o tempo perde seu rigor dimensional (um meio). Então, de certa forma, é uma terapia. Ou talvez uma meditação. Seja como for, eis algo que vale a pena tentar, mesmo que se torne mais um projeto que durará pouco.

Mas, como dizem, um pouco é melhor do que nada.

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