Nébula Rasa

Relatos de um Estagiário

(Estado epistêmico: Relato passado há 13 anos. Creio não ter exagerado muito. Haver abandonado a licenciatura para trabalhar em laboratório indica como a experiência me afetou.)

Aos menores de 18 que estiverem lendo,

Hoje foi meu primeiro dia de estágio como docente. Tive apenas que assistir a algumas aulas de Ciências em uma escola pública, escondida nos guetos da minha cidade. Aqui segue o relatório do que pude presenciar. Espero que você, que esteja lendo tudo isso, tome vergonha nessa cara mal lavada e dê um pouco de orgulho a seus pais.

Através de meios mágicos, aos quais não posso citar devido às regras da irmandade oculta a qual participo, sei que muitos fedelhos e pimpolhos que estudam entre a 5a. e 8a. série lêem este blog. As perguntas a seguir, quiçá o post todo, é destinado principalmente para vossa reflexão. Como raios vocês agüentam ir à escola todo dia se uma balada seria bem mais proveitosa, já que a escola hoje não passa de uma rave à luz do dia? Vocês por um acaso sabem o quanto o seu professor gasta em antidepressivos para aguentá-los? Se você não sabe do que estou falando, é um bom sinal. Você ainda tem futuro. Caso contrário…

A Escola

Esperando por uma formalidade conservadora, quebrei a cara logo no começo. Ninguém me exigiu identificação alguma. Se eu fosse um drug dealer do GTA, teria faturado o equivalente a um carro zero-km só no primeiro dia. A escola em si era mais conservada do que eu esperava. Umas pixações aqui e ali e alguns canos quebrados. Inclusive, segundo informantes, houve um dia em que a diretoria da escola organizou um mutirão de limpeza e colocou os alunos para ajudarem a limpar a zona. A polícia foi chamada pois alguém disse que crianças estavam trabalhando forçadamente. Ironia ou não, os alunos não são responsáveis a limpar o próprio vandalismo.

A cara de pânico dos professores era evidente cada vez que nos cruzávamos pelos corredores. A professora de Ciências que me acolheu ficou excepcionalmente contente por ter recebido reforços. A aula começaria à 1h da tarde, mas os alunos só se acomodaram por volta da 1h35.

As Salas

Algo que achei bastante inteligente, e da qual não usufruia nos meus tempos de meninisse, eram salas temáticas. Nessa escola aí, os alunos se deslocam de sala de acordo com a matéria. Assim, uma sala de Química seria um laboratório todo equipado, como o esconderijo secreto onde fabricavam ooze no filme das Tartarugas Ninjas. Uma sala de Educação Artística seria um ateliê davinciano repleto de pinturas e trabalhos artesanais. Mas voltando para o mundo real, se o objetivo era deixar as salas adequadas a cada matéria, a escola falhou miseravelmente. A sala de Ciências possuia somente uma tabela de tabuadas colada em cima da lousa, do 1 ao 6. Havia também 5 cartazes fixados com trabalhos artísticos sobre natureza, provavelmente feitos pelos próprios alunos. Além disso, a classe se encontrava vandalizada, pixada do roda-pé da lousa até os ventiladores do teto quebrados, lixo jogado e cartas de baralho pelo chão.

A Aula

A professora, ao entrar na sala, fez a chamada e começou a passar a matéria na lousa sem pestanejar. A aula se iniciou com o assunto “Evolução”. Ela havia cobrado para este dia uma redação com o tema “O que eu faria para melhorar a minha satisfação pessoal, física e psicológica”. Porém, como ninguém havia trazido nada pronto e tampouco começado, ela adiou a entrega para a aula seguinte. É espantosa a benevolência da professorinha em questão, se é que podemos chamar de benevolência a impotência de controlar um bando de animais agitados. Não há como manter a atenção na classe, senão ajustando sua garganta para 150 decibéis e uma descarga de Bloodlust.

A classe atrasava a aula o tempo todo, pois nossa docente saía para garimpar alunos ausentes na sala e acalmar os que estavam bestialmente animadinhos. Enquanto a professora passa a matéria na lousa, alguns gritam “Sai da frente, porra, senão eu não vou mais copiar, caralho!”. Toda família deveria ensinar o respeito a esses putinhos que ocupam um lugar na escola pública com suas bundinhas suadas. No entanto, a falta deste termo na escola é estúpida e tristemente evidenciada em apenas alguns minutos de aula.

Era agora 1h52 e a professora não havia saído do primeiro quadro de matéria, sem pronunciar uma palavra ao menos. A este ponto, não faria diferença alguma, pois os grunhidos da classe cobririam a onda de impacto de um asteróide de médio porte se chocando com um gongo de bronze. De momento em momento, alguém atirava um giz certeiro contra a cabeça da professora. Esta nada poderia fazer a não ser ignorar a fantasia demente de um futuro atleta brasileiro arremessador. A professora, no entanto, não era alvo único. O espaço aéreo da sala se tornou mais movimentado que o tráfego de Boeings sobre a Europa, ocupado por gizes, canetas, aviões de papel, sabonetes desgovernados e cadeiras aladas. Até eu fui atingido por um projétil esferográfico perdido (ou talvez não tão perdido).

Como toda boa escola, o uso de livros didáticos é obrigatório mas pouquíssimos alunos os trazem.

As aulas são notoriamente tratadas com descaso pelos alunos, sendo que durante elas não há qualquer demonstração de desempenho por parte deles e isto de maneira nenhuma é cobrada pela escola.

A professora termina de escrever algumas linhas de matéria na lousa e pede à classe que façam um resumo de uma página do capítulo do livro, valendo nota na média final. Ela promete que se eles se comportarem, brincarão de forca com termos relacionado à matéria. 2h55 e o resumo é cobrado uma vez, mas a maioria não o entrega. Contra a condição de que a atividade lúdica seria efetuada somente sob comportamento adequado, a professora resolve brincar de forca mesmo assim, esquecendo-se do tal resumo. Após alguns minutos de caos, o jogo da forca também foi esquecido, dando lugar a uma algazarra vista somente no primeiro Woodstock, em 1969.

Os Alunos

Minha parte preferida do post e que renderia um bom documentário no Reino Animal da Discovery. Eram 25 alunos presentes, divididos em 5 grupos distintos: os nerds, as patys, os manos, e os normais femininos e masculinos. Apenas 10 deles copiavam a matéria da lousa. Alguns saem da classe sem pedir permissão à professora, outros falam ao celular e deixam o MP3 player correr solto. Você deve se perguntar se algum possui o rabo sentado em algum lugar, e de fato, possui: sobre a mesa e cadeira do professor.

Algumas alunas não utilizam peça alguma do uniforme, indo com calças de ginástica e blusinhas decotadas, se agarrando em meio a todo mundo com os manos ou outros, como um College Fuck Fest. Vamos lá, não é hipocrisia e nem resmungo de um velho ranziza e conservador. É que estou falando de uma classe de sétima série!

Algumas delas ainda usavam maquiagem pesada demais até pra uma casa de shows. Parece-me que, nesta cultura, isto é uma indicação visual de quem vai engravidar antes dos 14 anos.

Alunos de outras salas transitam livremente nesta, trazendo lanches e bebidas. A diferença de idade entre os alunos é gritante: dos 12 a 16. Como em todo grupo, os animais mais velhos tendem a impor respeito aos mais novos na base da dentada. Violência física entre os alunos alcança o nível tolerável de uma rebelião de presídio. Palavreado e conhecimento mais que obsceno utilizado nas conversas faria inveja ao mais experiente dos sexólogos. Alguns alunos desenham na lousa, contra a permissão da professora, símbolos pixados no muro da escola, sem medo de serem acusados.

Os garotos menores, como dito antes, são as presas preferidas da maioria. Um deles era o CDF da sala, todo engomadinho e muito quieto, porém, ninguém o perturbava. Provavelmente o tribunal judiciário estabeleceu um perímetro limite ao qual ninguém mais poderia ultrapassar, ou utilizava seu cérebro pulsante com poderes psíquicos para induzir mentalmente palavras repulsivas de comando aos demais.

Nada obstante, o alvo geral da sala, um dos alunos isolados de menor idade e estatura, foi perturbado a aula inteira com chutes, croques na cabeça, saquinhos d’água, cadeiras arremessadas e canetas aladas, finalizando categoricamente com uma bomba de pó de giz no cabelo, se tornando assim o mascote preferido da sala, apelidado carinhosamente de Clodovil. Fico imaginando os danos psicológicos causados a uma criança dessa idade que precisa tanto de um relacionamento social saudável para se tornar um adulto completo. São esses pobres seres que no futuro acabam se tornando maníacos sexuais, assassinos em série e atendentes de tele-marketing.

Mas este era apenas um moleque raquítico contra seis MANO DAS KEBRADA E PAS BLZ MOROW MANO E RESSPEITO ISSAÊ e mesmo assim ele sorria de uma forma benévola e inocente, como se admirasse todo o espetáculo do circo no qual ele era o ursinho retardado de saia tentando se equilibrar em uma bola. Deste comportamento peculiar, pude concluir duas alternativas:

  1. O menino desenvolveu a Síndrome de Estocolmo, onde o agredido começa a ter simpatia pelo agressor;
  2. Por dentro ele estaria pensando “isso… dêem risada! Aproveitem esta semana, enquanto vocês ainda têm mandíbulas”.

A professora, percebendo que a classe estava se esvairando e perdendo o contorno, se tornando intangível e fugindo para um plano infernal inferior, resolveu usar as rédeas que lhe faltavam e acusou erroneamente outro aluno do feito. Isto acabou causando revolta a quem prestava atenção ao espetáculo, com jargões pejorativos que não aprendi em 5 anos de faculdade, e uma semi-agressão física.

Quando tudo parecia perdido e completamente fora de controle, o líder do bando se fantasiou de Batman e saiu correndo da sala, berrando como um mamute em chamas. A professora convida então o aluno demasiadamente agitado a ir embora. Desacreditado daquele cenário maldito, saio da sala na hora do intervalo e vejo uma rodinha de 6 ou 7 alunos, segurando um menino bem menor do que eles e contra a vontade, simulando um estupro. Como não havia inspetor nenhum, coube à professora, que havia acabado de sair da sala, ir até lá e acabar com a cena repugnante.

E assim terminou meu dia. Tema, tema muito, pois voltarei a semana que vem para dar a aula de Ciências para essa turma.