Nébula Rasa

Histórias do fim do mundo

Capítulo 4: Prelúdio do fim

O ambiente estava glamorosamente agitado e com cheiro de shampoo “sabor cereja”, como todo salão de beleza unissex barato deveria ser. O mastigar das diversas tesouras acontecia fora de compasso, abafando as gargalhadas escandalosas de cabelereiros afetados que trocavam fofocas com mulheres de meia idade, todas adornadas com bobes nas cabeleiras crespas, incluindo alguns dos próprios cabelereiros. Os poodles de companhia com laços sortidos iam e vinham, pulavam e rodopiavam no ar em um balé caótico pelo salão, como pipocas peludas em uma panela aberta. Hora ou outra ouvia-se um cãozinho sendo aplainado pelos pés de uma funcionária desatenciosa e seu respectivo berro assustado. Os menos afeminados gargalhavam, outros(as) surtavam em mil e uma blasfêmias no idioma das passarelas. A televisão suspensa acrescentava uma interferência de fundo, intercalando cenas da novela da tarde com plantão de notícias. Eu odeio cabelereiros.

Era uma semana importante e fora do comum, talvez eu até aparecesse no telejornal da região e desse meu depoimento sobre O Grande Evento. Não poderia simplesmente ignorar minha aparência mulambenta. Algumas horas antes eu havia decidido tomar o rumo até a barbearia do Dito, um senhor veterano de guerra que agora era barbeiro, e já separou mais orelhas do corpo que trincos das granadas. “Sem tesoura, o senhor pode passar só a máquina”, um jargão prático que desenvolvi para minha própria segurança enquanto observava a clientela do Ditão desembolsar mais do que trocados.

Era o único barbeiro do bairro e naquele dia se ausentou, deixando uma plaquinha pendurada na maçaneta da porta dupla de vidro: AFB (away from barbershop). Havia entrado em coma ao confundir o remédio para diabetes com o energético Power Ninja de seu neto bombado. Minha única opção naquele dia era, deste modo, desviar-me ao salão de beleza mais próximo, “Vislumbre’s Haircut & Cia”, e esperar que o cabelereiro selecionado pelo Universo para me atender fosse discreto e preferencialmente mudo. Lembrei-me, ao pôr os pés na soleira cor-de-rosa do salão, de que a discrição é um termo inexistente no mundo do glamour e mesmo os cabelereiros mudos usam aventais lantejoulados que falam por eles e todos os mudos do mundo. Davidson, o rapaz que tesourava meu cabelo naquele templo pandemônico feito de ossos, sangue e laquê, era tão unissex quanto o próprio salão e disparava fofocas quentíssimas enquanto eu não prestava a mínima atenção.

Terminado o serviço, fui levado até uma sala onde permaneci deitado em uma cadeira engraçada para lavar o cabelo e tirar aqueles fiozinhos chatos que ficam na roupa. Desacatando minha ordem de apenas cortar o cabelo e evitar frescuras cosméticas, Davidson me largou com a cabeça lambusada em creme rinse e falou: “Vou buscar uma pomada para o cabelo MA-RA-VI-LHOSA, volto loguinho!”. Saiu e fechou a porta logo atrás. Ele era um homem alto, de aproximadamente dois metros, vestindo roupas brancas com um avental roseado. Saiu saltitando pela porta com o nariz arrebitado para os céusc omo um personagem de Mary Poppins.

Capítulo 5: Acordei que sonhava

Dormia mal. Ora ou outra eu acordava com o próprio ronco e me virava para o outro lado da cama. Sonhei com dezenas de temas diferentes e todos os finais levavam a um abismo ou uma escada onde eu tropeçava, caía e acordava de susto com os olhos semi-cerrados. Era quase manhã, parecia, a luz do sol ainda era fraca. Estava com frio e morrendo de vontade de urinar, mas a preguiça de levantar da cama era até mesmo maior que a dor de cabeça, que só havia surgido durante a noite.

Talvez eu tivesse deixado o edredom cair da cama de novo. Com os olhos fechados, tateei à minha volta a procura do cobertor errante e instintivamente travei a respiração com as pálpebras fortemente fechadas. Não foi o fato de meu cobertor ter sumido, do travesseiro estar duro como uma pedra ou da minha cama estar intensamente empoeirada, mas algo maior e intuitivamente mais sério do que uma noite agitada. Pus-me sentado na cama, ainda sem abrir os olhos, e esperei acontecer algo fora do comum, certificando-me de que eu ainda estava sonhando e não acordei. Um daqueles sonhos dentro dos sonhos que você pode manipular a realidade, criar pessoas para em seguida explodí-las e, finalmente, acordar quando bem quiser.

Enquanto calculava se deveria averiguar o que estava acontecendo fora do sonho, senti um forte aroma de cereja. Shampoo de cereja. Pelo amor de Deus e tudo que era mais sagrado, eu não estava no meu quarto. Eu não voltei para casa naquele dia. Não era para eu estar dormindo! O que eu estava fazendo antes? Ah, cortando o cabelo. Eu ainda devo estar então…

Capítulo 6: No fim do espetáculo

Minha memória dizia enfaticamente de que eu estava no salão de beleza, no cômodo onde havia as cadeiras com esguicho d’água. Meus olhos, por outro lado, sussurravam que eu estava sob uma pilha de escombros onde a única fonte de luz vinha de uma pequena abertura pouco maior que um pêssego. Tomado em desespero ímpar, como o de uma meninazinha inglesa vendo seu gatinho sendo devorado por uma aranha das Índias Orientais, esfolei-me freneticamente tentando empurrar as pedras mais leves ao redor daquele buraco até que eu pudesse passar por um racho suficientemente grande. O espaço para tal era bastante limitado e eu mal conseguia permanecer em pé.

Meti a cabeça para fora e voltei instintivamente. “Se eu voltar para dentro, posso viver aqui por mais algum tempo até que tudo volte ao normal”, pensei, após a lógica ter me abandonado repentinamente. Por alguns segundos que pareceram horas de meditação, tentei calcular mentalmente quanto tempo seria necessário até que a realidade lá fora se alterasse miraculosamente, contrapondo esta variável com quanto tempo eu agüentaria sem ir ao banheiro. Pensei na probabilidade de um tubo do Mario brotar perto de mim, tal que ele desse diretamente na minha casa. Já sem qualquer pingo de razão, concluí: “quando voltar, preciso postar isso no blog”. Perdi-me nas contas e voltei a mim.

Minha cabeça latejava e parecia que eu vomitaria a cada pulsada, se dentro do meu estômago ao menos houvesse algo. Aparentemente eu houvera ficado mais que um dia dentro da bat-caverna. Além da fome, minha garganta estava tão seca quanto aquela toca inóspita de concreto e shampoo de cereja. Depois de mais alguns arranhões bastante profundos, libertei-me daquele espaço minúsculo e permaneci em pé sobre o monte de escombros, com as mãos na cabeça por algum tempo. Não era um sonho de mau gosto elaborado por meu subconsciente masoquista, tampouco fui teleportado para a série de jogos Fallout.

As paredes do salão permaneciam em pé, pretejadas do lado de fora como um forno de pizza, mas sem qualquer vestígio de telhado (ou pizza). O chão fora acolchoado por concreto, vergalhões, telhas aos cacos, pessoas e cachorrinhos mortos e dezenas, talvez centenas de embalagens coloridas de condicionadores para cabelo. Todos assassinados por tesouras finas, longas e de tirar volume que voaram em direções diversas, provavelmente devido a um grande impacto.

A vizinhança não era diferente. Tudo aquilo que um dia foi um bairro residencial agora era um conjunto de paredes queimadas por um inferno dantesco. A rua e as calçadas estavam plenamente cobertas de obstáculos. Caminhar por elas exigia muita atenção e um estômago de ferro para não pisar em estômagos, entre outras vísceras. Havia corpos jogados aos milhares; uns enrugados e escuros como uvas passas, outros cobertos em sangue seco. Quase todas as pessoas seguravam seus celulares – alguns foram completamente derretidos e anexados aos crânios das uvas passas, enquanto outros pareciam intactos. Em minhas mãos tentei fazê-los ligar, mas era inútil.

O céu estava completamente encoberto e mal se poderia ver o sol. O ar estava seco e pesado. Era possível sentir um cheiro suave de ozônio.

A bomba havia explodido, o Dia do Julgamento havia chegado e o cataclisma de três dias havia passado enquanto eu permanecia em coma, protegido misteriosamente por escombros e óleo rinse. Eu não sabia ainda, mas naquele momento eu era o ser humano com o corte de cabelo mais bonito do planeta.