Nébula Rasa

A Terra é oca?

Sugestão enviada pela Rachel, uma de nossas leitoras, o assunto que abordarei hoje ostenta o sabor crocante da conspiração e ocultismo; sabor talvez até mais acentuado que a controversa teoria sobre a existência do planeta X entitulado “Nibiru” ou “Hercólubus”, abordada há alguns meses neste mesmo sítio. Tratemos hoje sobre uma idéia que encantou a humanidade durante o período vitoriano, em forma de ficção científica, e que hoje retorna tomada de seriedade entre os círculos pseudo-científicos:

i) a de que nosso planeta é oco;
ii) de que existe um mundo intra-terreno habitado por espécies exóticas e inteligentes, e onde pensamos se localizar um núcleo planetário, na verdade, existe um sol suspenso;
iii) de que há duas passagens para o centro da Terra, localizadas uma em cada pólo magnético.

Imagem disponibilizada por um cara que diz ser das Plêiades, na constelação de Touro.

Imagem disponibilizada por um cara que diz ser das Plêiades, na constelação de Touro.

Vamos à parte cremosa da sabatina: demonstrações lógicas que vão contra a hipótese da Terra oca, cuja evidência mais contundente se baseia em suposta psicografia, canalizações alienígenas ou histórias para boi dormir de um suposto piloto de avião que atravessou um buraco gigante no Pólo Sul, conheceu o centro da Terra e voltou pra escrever seu livro (que se chama “A Terra Oca”, e ainda não tive a oportunidade de tê-lo em mãos).

Deixá-lo-ei pesquisar sobre o assunto mais profundamente e concluir por si mesmo se nosso planeta é ou não um grande Kinder Ovo. Mas para dar-lhe um empurrão, seguem aí alguns argumentos simples que sugerem a não-veracidade da hipótese da Terra oca.

Tese: nosso planeta é oco

Em questão de momento de inércia (representado por I), grandeza atribuída a corpos em rotação, quanto maior a concentração de massa em um corpo, mais rápido ele gira. Para cada forma geométrica, tem-se uma fórmula diferente para calcular o momento de inércia. Para nossa demonstração, utilizaremos duas configurações diferentes: a esfera maciça (para representar a Terra como a imaginamos atualmente) e a casca esférica (para representar a Terra oca).

Onde M e R são a massa e o raio do corpo, respectivamente. Sabemos precisamente a velocidade angular que nosso planeta gira (2_pi_ rad/dia) e que na hipótese da Terra oca, nosso planeta deve girar com a mesma velocidade, ou nosso dia teria mais de 24 horas. Sendo , Me, Mc e R a massa da esfera maciça – ou seja, nosso planeta –, a massa da casca esférica e o raio de ambas, respectivamente, e sabendo que os momentos de inércia são necessariamente iguais, já que na hipótese da Terra oca, o dia também tem 24 horas, então

Note que para a hipótese da Terra oca, o planeta deveria possuir uma massa menor que a de uma esfera maciça de mesmo raio. Desse modo, a aceleração gravitacional da Terra seria três quintos do valor que conhecemos, ou seja, aproximadamente 6 m/s² ao invés de 10 m/s², segundo a fórmula newtoniana da gravitação universal:

Reduzindo a equação a um nível menos abiscoitado e trabalhando com o módulo do vetor força gravitacional, temos que

Esta provavelmente é a fórmula que você estudou com afinco (pfff…) no primeiro ano do ensino médio. Agora vamos à parte que interessa, que é calcular a aceleração gravitacional.

DICA Se algum dia você quis saber como os cientistas descobriram a massa do planeta Terra, eis a sua resposta. Através dessa fórmula, basta você saber a aceleração gravitacional (aprox. 10 m/s²) e a massa da Terra é facilmente calculada, estimada em 5,97 x 10²⁴ kg)

Desta maneira, a aceleração gravitacional na superfície do planeta Terra, com massa Me (considerando o planeta como uma esfera maciça) e raio R, é dada por

De forma análoga, podemos calcular qual seria a aceleração gravitacional de uma Terra oca (casca esférica):

No entanto, sabemos que isto é falso, pois você mesmo é capaz de calcular grosseiramente a aceleração gravitacional do planeta: basta deixar um objeto cair em queda-livre e calcular tanto a distância que ele percorreu, quanto o tempo que levou até tocar o chão.

Conclusão: Se a Terra fosse oca, o planeta giraria mais rápido, e não é isso que observamos no dia-a-dia. Se ela gira na velocidade que conhecemos, sua massa seria necessariamente menor, para igualar-se ao momento de inércia de uma esfera maciça. No entanto, a aceleração gravitacional seria menor, e sabemos que isto também não acontece. Logo, a Terra não pode ser oca.

Tese: existe um mundo intra-terreno habitado por espécies exóticas e inteligentes, e onde pensamos se localizar um núcleo planetário, na verdade, existe um sol suspenso.

O próprio argumento que utilizei anteriormente, mostrando que é impossível a Terra ser oca, já seria suficiente para desbancar esta segunda tese – se a Terra não é oca, então não há seres exóticos e inteligentes morando lá, certo? Mas eu, que sou um homem do campo, acredito que roupa suja se lava em casa, que sobre leite derramado não se chora e que quanto mais pragmatismo, melhor.

O que lhe direi agora parecerá bastante contra-intuitivo, apesar de comum desde a época de Isaac Newton, portanto sente-se e preste atenção: no interior de cascas esféricas, a gravidade causada pela massa da casca é nula. “Eita, porra!”, pensou você alto. Sinta-se livre para discordar a princípio, mas este fato é real, comprovado em laboratório e sua demonstração matemática pode ser vista neste endereço (obs.: estudantes que ainda não tiveram contato com Cálculo Diferencial podem achar a demonstração deveras entediante).

Façamos agora o seguinte experimento mental: imagine que a vida tenha se desenvolvido no interior do planeta e que haja um sol suspenso em seu centro. Quando Júlio Verne escreveu sua obra-prima “Viagem ao Centro da Terra”, para fins de ficção científica ele deixou intencionalmente de lado o fato de que a massa do planeta não prenderia os seres ao chão, como acontece na superfície externa. A narrativa ficaria bastante alegórica, caso a história se passasse em gravidade zero. Mais um ponto que Verne deixou passar: a força gravitacional causada pelo sol suspenso faria com que os corpos no interior da Terra tendessem a “subir” até o centro. Eis minha contribuição artística para este fato inesquecível:

Portanto, se houvesse um sol no centro do planeta que servisse para aquecer os habitantes intra-terrenos, este tragaria tudo em seu raio de alcance, e para evitar essa situação desagradável, todos teriam de viver amarrados pela cintura ou agarrados em hortaliças.

Outro fator bastante desagradável para os partidários da Terra oca é que o sol no interior do planeta deve ter proporções diminutas, com seu diâmetro algumas vezes menor que o diâmetro da Terra. Uma estrela com tais proporções teria esgotado seu combustível há muito tempo, colapsando sobre si mesma e se tornando uma grande bolota flutuante de metal, fria e sem sentimentos (e também impossibilitando o desenvolvimento da vida no interior do planeta).

E o que dizer da tectônica de placas? Se não existe um manto derretido de minerais no núcleo do planeta para que as placas deslizem, como elas se locomovem? A teoria da Terra oca também falha em explicar, entre os fatos anteriores, o movimento dos continentes, a elevação de montanhas, o rifteamento geológico e a própria lava oriunda de atividade vulcânica – se o núcleo não existe no interior do planeta, de onde vem a lava dos vulcões? E as fontes termais nos fundos do oceano?

Conclusão: É improvável que exista uma “biosfera” rica em vida exótica e inteligente no interior do planeta. Se um dia existiu, ou foi tragada pela gravidade do sol intra-terreno, ou sucumbiu à morte da estrela há aproximadamente dois bilhões de anos. A ausência de um núcleo quente no planeta também inviabilizaria a tectônica de placas e a atividade vulcânica – a menos que estes façam parte de uma ilusão coletiva. Foi desconsiderado o fato de não haver noites e, conseqüentemente, haver super-aquecimento da atmosfera devido ao Efeito Estufa.

Tese: há duas passagens para o centro da Terra, localizadas uma em cada pólo magnético.

Eis um equívoco comum entre os que criam fantasias pseudo-científicas e têm a presença de espírito de envolver o Pólo Norte: aquela calota imensa no extremo norte não é um continente, mas apenas uma imensa porção de gelo que flutua pelo Mar Ártico. Então, como seria possível um túnel natural para o centro da Terra localizado no meio do oceano?

Conclusão: Se um dia existiram seres inteligentes no centro da Terra, eles já morreram afogados pela água dos oceanos que entrou pelo orifício localizado no norte magnético.

Mundo real ou fantasia?

Agora que expus minha opinião sobre o porquê de tais proposições serem naturalmente insustentáveis, desejo abordar um fato importante e muito preocupante em relação à nossa atual sociedade, que parece ainda não ter eclodido da casca fúnebre de obscuridão intelectual que vigorou durante milênios e teve seu clímax na alta idade média.

Perceba que em momento algum me direcionei à idéia de um planeta oco como teoria, mas sim como uma ficção estacionada entre o conto-de-fadas do Shrek e o delírio religioso. Uma teoria, stricto sensu, é um conhecimento especulativo, meramente racional, mas cujas leis são capazes de relacionar uma série de fenômenos.

A hipótese da Terra oca – um termo mais compatível – , embora não seja sustentada nem por leis especulativas, nem por demonstrações em laboratório, faz sucesso nas ciências marginais pelo aroma puro do secreto e misterioso que, por vezes, é muito mais convidativo e instigante que a verdade mundana, pois toca o imaginário popular com itens como alienígenas e conspirações governamentais. Mas é certo abrir mão de investigar a verdade, apenas porque ela parece menos divertida? Em uma passagem de “Círculo das Estações”, Edmund Way Teale diz:

”Moralmente é tão mau não querer saber se algo é verdade ou não, contanto que você se sinta bem, como o é não querer saber de onde vem seu dinheiro, contanto que ele esteja em suas mãos”.

Os fiéis à idéia da Terra oca não pedem por provas ou argumentos que confirmem sua veracidade, pelo contrário: contentam-se apenas em saber que existem comunidades no Orkut com outros participantes da mesma linha de pensamento, e ficam satisfeitos – pela impressão própria, diria aliviados. Vivemos em uma democracia que garante o direito de cada cidadão acreditar naquilo que lhe convém. Mas será saudável cultivar esse tipo de crença cega e negligente? O que garante que o mesmo cidadão que aceitou a idéia da Terra oca de braços abertos, amanhã não vote no primeiro candidato a governo que lhe prometa aquilo que quer ouvir? Quais seriam as implicações de um júri popular ser composto por indivíduos que prefiram acreditar em alegações, não nas que possuam as melhores evidências, mas naquelas que as cativem mais?

Uma ilustração para este problema é o incidente envolvendo uma brasileira no exterior, mais precisamente na Suíça, e que conseguiu a atenção da maioria dos telejornais brasileiros na época. A mulher, que vivia naquele país há alguns anos, alegava ter sido atacada por xenófobos, que lhe causaram, além dos cortes com mensagens visivelmente nacional-propagandistas, a interrupção de sua gravidez. Os cortes, feitos supostamente por estiletes, formavam a sigla de um dos grupos integralistas mais violentos do país. A polícia forense suíça levantou a hipótese de que a brasileira pudesse ter ferido a si mesma, pois os cortes eram precisos e simétricos demais para terem sido feitos em uma vítima que se debatia vigorosamente para salvar a criança em seu ventre, como testemunhou a própria. Além deste argumento, houve o teste médico que não indicou nenhum sinal de gravidez anterior ao ato violento.

No Brasil, um sentimento patriótico aflorou em boa parte da população, que havia abraçado sem contestações a causa da conterrânea e praguejava com fervor contra a Suíça, sua polícia, habitantes e sua maldita neutralidade. Os telejornais obviamente souberam explorar este nacionalismo infundado para angariar maiores audiências, enquanto os espectadores cada vez mais dividiam as dores da vítima – e não o foi porque a polícia suíça parecia estar errada; apenas um mero reflexo da falta de ceticismo e excesso de paixão pelo mais apelativo, feitios enraizados na mente popular. Poucos dias depois, a brasileira confessou que tudo não passou de um golpe elaborado por si própria para conseguir indenização do governo estrangeiro. Ponto para o racionalismo forense, que impediu uma charlatã de conseguir o equivalente a 200 mil reais. Não estou a defender a descrença absoluta em uma hipótese, mas a investigação antes de tomar algum partido. Como Henri Poincaré disse em “A Ciência e a Hipótese”:

“Duvidar de tudo ou em tudo crer são duas soluções igualmente cômodas, que nos dispensam, ambas, de refletir.”

Os cientistas não fazem parte de um clube restrito e sabem que eles não detém a verdade absoluta, e que a qualquer momento velhos paradigmas serão quebrados por teorias completamente novas. No entanto, a opinião popular é diferente a esse respeito, que pode ser resumida no comentário que ouvi de um colega da mesma faculdade:

”Os cientistas são orgulhosos, pedantes e ignoram qualquer visão inovadora, que seja diferente das deles. Até há pouco tempo, todos tinham certeza de que a Terra era plana e depois tiveram de dar o braço a torcer. Hoje, os cientistas continuam com a mesma mente fechada da Terra plana, parece que não aprenderam nada.”

Esta afirmação denuncia como a ciência não está integralmente à disposição de toda a população. O dono do comentário acima era, na época, um universitário com nível cultural bastante generoso e com diversos meios de informação à sua disposição. O que dizer então de um cidadão sem curso superior e cuja única fonte de informação é um canal aberto de televisão? Afinal, por que a visão exposta pelo universitário está equivocada?

Ao contrário do que pode parecer, o método científico como o conhecemos atualmente é uma novidade para o ser humano, pois nasceu há pouco mais de um século. Desde o berço da raça humana, todos os fenômenos naturais que não pudessem ser explicados eram atribuídos a elementos divinos: relâmpagos são jacarés de fogo que cruzam o céu; ataques epiléticos são possessões demoníacas; tsunamis são o castigo de Deus sobre um país pagão; deficiências congênitas são características de uma divindade encarnada; relâmpagos esféricos são discos-voadores; gases fluorescentes do pântano são fantasmas. A idéia de que a Terra era plana, o centro do Universo e de que o movimento das estrelas era conseqüência do grande motor que não se movia – leia-se o deus cristão – era justamente defendida pela Igreja Católica e encontrava grande aceitação entre a população. Os cientistas, que afirmavam o contrário e expunham evidências lógicas, eram apedrejados pelo povo, assassinados na fogueira por heresia ou confinados a prisão domiciliar perpétua.

A ciência não impõe obstáculos sobre novas teorias, tampouco menospreza novos pontos de vista, desde que façam algum sentido; ou seja, o proponente da teoria deve ter alguma maneira de demonstrar que ela não é pura fantasia. Portanto, se a suposta teoria da Terra oca carregasse consigo alguma prova de sua validade, que anulasse de forma precisa o que conhecemos até hoje sobre núcleos planetários, certamente seria recebida de páginas abertas.